CONTOS SEM NEXO


 
VIDA
SEM
ALMA

E ele roubou o sorriso metálico da estátua de bronze...”


  






  O despertador toca estridentemente e faz desvanecer o sonho de Mário, que acorda assustado. Leva alguns instantes para compreender o que está acontecendo. Confere a hora, se espreguiça, sente um ímpeto de jogar longe o aparelho e voltar ao seu sonho, que lhe parecia ser tão bom apesar de já não conseguir lembrá-lo (por que cargas d’água a gente se esquece do sonho que está sonhando quando acorda?), desliga o alarme do relógio, levanta-se e se dirige ao banheiro para sua higiene matinal. Na cozinha o café já o espera, preparado pelos filhos que já saíram para o trabalho ou para a escola. Prepara seu desjejum e o da esposa, leva-o até a cama, e o tomam juntos. Ela se levanta, abraça e beija o marido, e dele se despede à porta da casa, desejando-lhe um bom dia de trabalho.
Mário já está atrasado. O ponto de ônibus, como sempre está lotado. Mário fica em dúvida entre esperar naquele ponto ou se dirigir à outra rua, onde poderá tomar o lotação de outra linha, pois ele demora mais e o deixa muito longe do escritório, apesar de estar sempre mais vazio. Na dúvida, sem coragem para tomar uma decisão, vai deixando e tempo passar, o ponto vai se enchendo cada vez mais, e quando o ônibus finalmente chega, está, como sempre, apinhado de gente.
Mário entra, pois agora não dá mais para esperar outro nem ir para o outro ponto. O ônibus vai balançando, com os passageiros se amassando e se cutucando, um cheiro de gente subindo pelas narinas já em plena manhã. Odores de todo tipo. Suor, lanches escondidos em bolsas e mochilas, almoços preparados na madrugada ou requentados do dia anterior enrolados em papel e escondidos no fundo das bolsas, passageiros com banhos vencidos, tudo fere as narinas de Mário, que se sente cansado e desanimado.
Mário sonha que está numa aventura em plena idade média. É um justiceiro que está sendo caçado pelos guardas do rei. Um deles atira uma flecha certeira, e quando parece já sentir a dor lancinante do ferimento, um som estridente o arranca da aventura e o transporta de volta. Acorda assustado e demora alguns momentos a perceber-se da realidade. “Merda de despertador. Droga. Caramba, já é hora de levantar! Que droga! Meu Deus, não dá pra dormir mais um pouquinho só?”A vontade é jogar o despertador pela janela e voltar ao sonho. “O que eu estava sonhando mesmo? Parece que era um sonho bem legal. Merda, a gente se esquece de um bom sonho logo que acorda.”
- “Acordar, levantar, escovar os dentes, tomar café, ir pro trabalho, voltar pra casa, dormir, acordar, levantar, puts”.
Os filhos de longe se despedem e avisam que o café está na mesa. Mário vai até a cozinha e prepara o seu café e da esposa. É interessante, pensa, preparar o café da esposa já fora uma tarefa difícil que o deixava possesso, mas com o tempo se tornara prazeroso, era como um carinho matinal.
Depois de tomarem juntos o café no quarto, ela o leva até a porta e eles se beijam. Ah, aquele beijo! Aquele beijo matinal era que fazia toda a diferença na sua vida. Era o que lhe dava alento e forças para o trabalho, coragem para enfrentar aquele ônibus lotado, saindo gente pelas janelas, gente malcheirosa e mal educada, se acotovelando e se relando por toda a viagem, cheiros de comida gordurosa e passada. Às vezes chegava ao escritório com sensações de vômito.
“Droga de ônibus. Atrasado como sempre. Deste jeito não chego no escritório na hora. Será que eu vou pro ponto do 502? Lá é bem melhor, vem mais vazio. Mas demora mais e dá voltas que não acabam. Vai dar na mesma. Vou acabar chegando atrasado de um jeito ou outro. Ôpa, chegou. Lotadaço, como sempre. Fazer o quê. Tenho que ir assim mesmo. Já passei do meu horário. Se esperar o próximo meu chefe me manda pra casa de volta, aquele corno. Não tem respeito nem consideração por ninguém”.

Mário chega ao escritório em cima da hora. Seu chefe olha para ele e depois de forma bem clara para o relógio pendurado na parede. Mário bate o cartão e se dirige à sua mesa, abre a gaveta, retira de lá suas ferramentas de trabalho e começa o seu dia.
Há mais de 25 anos Mário trabalha em um escritório de uma grande empresa. Conferir e efetuar lançamentos, notas fiscais, recibos, emitir ordens internas, memorandos, emitir ordens de pagamento, conferir ordens bancárias e outros papéis de toda espécie é sua rotina, rotina esta que já o estressa.
Anos atrás, tudo que Mário fazia tinha uma certa magia, um prazer especial, hoje é tudo de uma chatice sem tamanho, o serviço, os colegas de trabalho, o seu chefe, os clientes que ocasionalmente é obrigado a atender, os telefonemas para receber e efetuar cobrança por algum atraso nas tarefas do escritório...
Mário às vezes se lembra de quando começara a trabalhar naquela grande empresa, seus sonhos de progresso profissional e pessoal, estagiário de Ciências Contábeis, cheio de planos e expectativas, energia total, a cabeça fervilhando de idéias modernas para colocar em prática no trabalho, pois a empresa “estava de portas abertas para novos talentos e novas idéias”, diziam ao contratá-lo.
O tempo, entretanto, é um adversário amargo e cruel. Não tem pena nem misericórdia de ninguém. Levou todas suas idéias, seus projetos, seus sonhos, sua carreira. Os anos viram Mário ser logrado, deixado para trás por outros colegas mais “políticos”, menos questionadores, mais “talentosos no trato” com os chefes e os poderosos que foram abocanhando os cargos de chefia, gerência, os aumentos, enquanto ele ficava sempre para depois.
Os anos tiraram de Mário o que ele ainda tinha de mais valioso: a coragem para recomeçar. Foi ficando por ali, esquecido de si mesmo, no seu dia a dia até que descobriu que era tarde demais para tentar qualquer coisa, que ele já fazia parte da paisagem daquele escritório, e que não mais tinha para onde ir.
Assim, Mário continuava sua tarefa diária, os colegas quase não conversavam com ele, praticamente só lhe dirigiam a palavra em caso de necessidade e ele era tido como um “deslocado, um peixe fora do aquário”, embora fosse de uma eficiência inquestionável.
Às 12 horas, Mário pontualmente sai para o almoço.

“Droga, quase não chego a tempo. Lá está o filho da mãe a conferir no relógio meu horário, como se ele cumprisse algum horário. Daqui a pouco, deixa o paletó na cadeira e vai começar a sua turnê pelo departamento. Na certa vai pegar alguma secretariazinha pra comer, o filho da mãe. É pena algum dos chefões não pegá-lo por aí, apesar de que eu acho que se ele for flagrado por algum deles na certa vai dividir a putinha com ele e fica tudo certo”.
“Carimbo, caneta, régua, esponja de carimbo, lápis, borracha, grampeador, furador”, Mário faz o check-list.
Pega os documentos que foram cuidadosamente guardados e trancados na gaveta no dia anterior e começa o seu trabalho. Cuidadosa, meticulosa e mecanicamente Mário cumpre sua tarefa diária. Enquanto os dedos digitam, reviram e passam os documentos, transcrevem dados das notas fiscais para o computador, a mente de Mário vai longe. Seus olhos percorrem o escritório, vêem sem perceber os colegas que quase nunca o cumprimentam, com quem raramente se relaciona, e relembra os tempos de sua juventude, quando começara a trabalhar naquela empresa. “Grandes dias aqueles, pensa. A gente estava cheios de idéias, energia e autoconfiança, eu o Checo e o Vigoto. Pô, cara, que fim será que levaram estes dois? Sei lá, devem estar bem melhor que eu. Olha pra mim (enquanto pensa e relembra, Mário chega quase a gesticular, como se falasse com alguém, ao mesmo tempo que continua automaticamente sua tarefa), quê que eu sou, quê que eu virei nesta merda de vida. Tenho um emprego, ganho um salário razoável, sustento minha família com algum conforto, mas não tenho nenhuma alegria com o que faço. Faço tudo como um robô, um maldito autômato que não pensa, não reage, não sente (por uma fração de segundos, Mário para sua tarefa, abre os braços como a mostrar a alguém o seu mundo)”. “Droga, o que  eu virei? Um bocó, como dizia meu pai! Eles foram espertos, viram que aqui não tinha futuro para os sonhos deles e se mandaram”.
Mário relembra sua vida, sua família, seu trabalho nestes anos na empresa. Quando seu filme da memória repassa pelos momentos em que foi preterido em benefício de algum colega para algum cargo, uma promoção, sobe-lhe um ódio, uma raiva contida, já calejada pelo tempo que invariavelmente o faz lembrar da fábula da raposa e da uva, e ele ri de si mesmo: “sois um grandessíssimo otário caro amigo  Mário. O despeito te corrói a alma mas não sois capaz de se levantar, reagir e correr atrás do que tanto queres. Idiota!”
O peito às vezes dói, o coração bate mais rápido em certo ponto das lembranças, mas o trabalho não perde o ritmo, os memorandos, ofícios e relatórios imbatíveis. Com ele nenhum serviço fica para depois. Tudo é feito na hora e no tempo certo e devido.
“Hora do almoço. Até que enfim”.

O horário de almoço, que outrora, no começo da vida de casado fora momento de alegria e prazer, com os anos se tornara mais um tormento. A distância da empresa com a residência não permitia que Mário fosse almoçar em casa, como fizera nos primeiros anos de casado, quando morava bem pertinho do emprego. Naqueles tempos, podia curtir a comidinha da esposa, seus doces e sobremesas “divinos”, como costumava dizer aos amigos, e podia namorar um pouquinho, o que alegrava seus dias e tornava o trabalho uma alegria sempre maior. Agora era obrigado a almoçar em restaurante diariamente, refeições com sabores nem sempre reconhecíveis, cheiros estranhos, higiene obscura.
O horário de trabalho mudara com os anos, e o tempo para a refeição diminuíra. No começo, a empresa mantinha restaurante, servia refeição com relativa qualidade, mas depois de alguns anos, com a famigerada “redução de custos”, cortara todas as “regalias” a que os funcionários estavam acostumados. Tentara as marmitas de “refeição caseira” que eram oferecidas por diversas fontes, mas não se acostumara. Com a invasão dos restaurantes self service, comida a quilo, ficara melhor, pois havia na redondeza várias opções, mas que tinha o desconforto de ser alimentação rápida, onde o cliente não podia se demorar, tinha que almoçar e sair para dar lugar a outro.
Mário almoça rápido. Com o tempo criara o hábito de se alimentar depressa, de cabeça baixa, sem nem mesmo perceber quem estava a seu lado na mesa. Comia, se levantava, pagava o almoço e saía. Às vezes passeava um pouco pelas ruas, olhava as vitrines das lojas sem prender sua atenção a nenhum produto em especial e então voltava para o trabalho.
Enquanto se dirige ao restaurante, Mário pensa nos tempos em que era casado de novo, morava perto da empresa, podia ir almoçar em casa, comer da comida de sua esposa. “Cara, você ainda se lembra? – a conversa consigo mesmo não para – cada dia era um prato diferente, ela tentava adivinhar seus gostos, uma forma de te fazer uma surpresa. Por que será que o tempo passa e a gente perde essa magia? Agora eu tenho que ficar almoçando esta gororoba – olha com certa repulsa a comida que coloca no prato. Pelo menos se a gente tivesse alguma opção decente. Cara, a refeição de um homem é uma coisa sagrada. A gente deveria usar a refeição da gente como uma oferenda a Deus, pra agradecer tudo que Ele nos dá no nosso dia a dia. A gente deveria almoçar tranqüilamente, sem correrias, sem pressa, saboreando cada garfada! Pô, e ainda temos de dividir a mesa com uns caras desses! Que sujeito porco! Não tem um pingo de educação!
Mário se levanta, paga a refeição e sai. Olha o relógio. Como almoçara muito rápido, ainda lhe sobram alguns minutos e ele resolve gastá-los andando pela rua. Perde-se olhando as vitrines: roupas, móveis, uma loja de veículos novos, bijuterias. “Que vestido lindo! Ficaria ótimo na Telma. Cara tem muito tempo que você não dá um presente pra tua mulher”, pensa. Mas não se prende à idéia, pois a lembrança da conta bancária no vermelho é mais forte. “Esta camisa ficaria muito bem em mim. É demais. Ei cara, você já passou da idade de vestir uma camisa assim! Eu? Eu ainda sou jovem, os anos é que são muitos”. Os próprios pensamentos o divertem e um quase sorriso aparece em seus lábios.
Mário para em frente à vitrine da loja de eletrodomésticos. Há muito tempo namora um aparelho de som. Entra na loja, se abaixa e olha o aparelho, se levanta e vai embora. para em frente à loja de carros. Seus olhos brilham quando olha para um veículo em especial, novinho. O vendedor o convida para entrar e ver os planos de pagamento, ele desconversa e continua sem caminho.
É o primeiro a voltar do almoço, “como sempre”.

Quase sempre era o primeiro a voltar ao escritório. Os colegas paravam pelo caminho em conversas, em casos que não acabavam, e o serviço que ia ficando pelas mesas acabava indo parar na sua, pois “dali ele tinha caminho certo, pensava Mário: ficava pronto”.
A raiva dos colegas que “morcegavam” fazia com que Mário ficasse ainda mais retraído, e retraído Mário se escondia no trabalho e não dava atenção a ninguém, o que só contribuía para aumentar sua fama de caladão “sistemático”. Quase ninguém o procurava a não ser por motivos de trabalho, e com isso toda tarefa difícil ou chata acabava caindo em suas mãos.
Mário continua sistematicamente suas tarefas. Olha ao seu redor e vê os colegas conversando entre si enquanto trabalham e sente uma pontada de ciúmes e inveja. Gostaria de poder mudar, de ser uma pessoa jovial, que tivesse amigos no trabalho, que tivesse com quem sair após o serviço, tomar uma cervejinha vez ou outra com os companheiros, mas isso já havia se tornado impossível. Sua imagem já estava formada, e não tinha mais como mudá-la, e nem ele achava que conseguisse mudar. Seus conceitos sociais e éticos já estavam enraizados, não mais havia como substituí-los.
Mário para para ir ao banheiro e tomar um copo de água. Passa ao lado da janela. Olha para fora e vê o pátio interno do prédio, 18 andares abaixo. Sente uma vontade de se atirar e acabar com tudo: sua vida, o desânimo, o descaso dos colegas. Pensa na confusão que seria se ele se atirasse. A polícia, ele esparramado lá embaixo, todo coberto de sangue, a correria das secretárias, o falatório em todo o departamento: “ele era mesmo um desajustado, um maluco de pedra! Eu sabia que ia dar nisso”, dizia a colega da mesa à sua frente. “O cara não falava com ninguém, vai ver a mulher tava chifrando ele, por isso pulou” dizia um outro. “Tem doido de todo tipo. Pular assim, sem mais nem menos”, dizia alguém que não o conhecia tão de perto. “Eu até que gostava do cara. Ele nunca me destratou”, dizia o boy. “Só pra ver a cara de todo mundo quase dá coragem de pular”, pensa Mário, mas ao mesmo tempo vem a imagem da esposa e dos filhos, a vergonha de terem de explicar aos amigos, parentes e vizinhos o inexplicável motivo de seu suicídio.
Mário volta à sua mesa e recomeça sua tarefa rotineira.

“Esses porra todos ficam de papo pelos corredores, flertando com todas as mulheres que encontram pelo caminho e o serviço fica pra mim. Ninguém faz nada e eu faço tudo. Também, você é um otário, não sabe falar não! Tudo que colocam na sua mesa você dá conta, faz à tempo e à hora. Tem de levar é ferro mesmo, otário”.
No correio eletrônico havia correspondência convidando para a festa mensal em homenagem aos aniversariantes. Mário nunca participava, nem no mês em que aniversariava. Sente uma vontade de participar. Sabe que sua presença não faz falta a ninguém, e que ninguém espera vê-lo numa dessas festas, mesmo assim tem um ímpeto inicial de participar, mas sabe que no fim não ficará, pois será um estranho no ninho.
Enquanto lê e responde a todas as correspondências, Mário se enfurece com as mensagens que carregam desnecessariamente sua caixa postal. “Droga, mas é cada porcaria que não tem nada a ver comigo, que não é do meu departamento. Será que esta porcaria de funcionária não sabe nem mesmo direcionar uma correspondência? E ainda tem estas porcarias de mensagens pessoais. A caixa postal da empresa não podia ser usada deste jeito. Droga, droga! Esta merda vai tomar todo meu dia!”
Mário vai à copa pegar um copo de água. Passa pela janela e olha lá embaixo o pátio interno do prédio. É como ver um fantasma, algo que o puxa irresistivelmente para fora. Sente uma vontade inexplicável de pular. Sente que poderia voar. Olha e se vê lá embaixo em meio a uma poça de sangue. Pensa com um leve sorriso no rosto na enorme confusão que seria se ele pulasse e se esborrachasse lá no chão. Polícia, empregados, chefes, seus familiares. “Droga, minha família. Seria uma barra. Eles jamais entenderiam. Iam pensar mil bobagens, coisas que não tem nada a ver”,
Olha os colegas que papeiam nas mesas em frente. “Mas que ia ser uma festa, ah isso ia! Estes carinhas iam ter papo pra muito tempo” – enquanto pensa, imita com voz de falsete a conversa das personagens: “o cara era mesmo um esquisitão”, “vai ver tava com câncer”, “eu acho que ele tava era afundado em dívidas”, a mulher deu o fora no cara, tô falando procês”, “a filha dele tá grávida, ele não agüentou, coitado”.
A própria imagem em meio à poça de sangue não lhe sai da cabeça. O trabalho rende mecanicamente. O horário de trabalho chega ao fim. Mário guarda seus pertences, os documentos, tranca a gaveta, marca seu ponto e se vai, sem se despedir de ninguém.

A volta para casa ocasionalmente é feita pelo metrô. Na volta Mário pode se dar ao luxo de esperar mais tempo pelo transporte. Enquanto espera o metrô lê os jornais e capas de revistas nas bancas – nunca compra qualquer deles porque detesta ficar revirando o jornal e revistas custam caro.
Embora não consiga se relacionar com os colegas do trabalho adora ficar observando as pessoas que passam por ele no metrô. Por ali passam histórias de vida, sonhos quebrados, derrotas e vitórias, casais desfeitos e novos amores que nascem, filhos que partem, filhos que voltam. “A vida sobre os trilhos não para, segue em direção ao infinito, como as paralelas linhas do trem” verseja Mário.
Quando o trem chega, Mário procura um lugar sempre ao fim do vagão, de forma que possa continuar a observar as pessoas. “Aquele casalzinho está no início do namoro. Tantos afagos e beijos vão acabar dando em outra coisa. Aquele outro, com a criança no colo, as dificuldades já chegaram. Quase não se falam, mas ainda se amam e estão juntos mesmo na dor, olha as mãos entrelaçadas. Aquele lá é do interior. Nunca andou de metrô antes. Está deslumbrado”. Enquanto cria histórias de vida para cada passageiro do trem, Mário cria para si uma nova história, de sucessos e fama, onde a cada dia há uma nova aventura a viver.
Gosta de observar a paisagem que passa pela janela, e sabe cada mudança que ocorre diariamente no caminho. Orgulha-se de ser capaz de voltar a qualquer lugar que já tenha ido, pois é um grande observador, marca pontos de referência e os segue até seu destino. “Pena que na vida não tenha conseguido fazer o mesmo”, pensa com desânimo.
Desce do trem. Tem que tomar um ônibus integrado para chegar em casa. Mas a pressa já ficou perdida pelos anos que passaram. Não tem mais o que conquistar. O relógio já não corre com tanta urgência.

“Mais um dia ou menos um dia?” se pergunta. Não tem pesar em deixar o trabalho. Já ouve tempo em que ele saía de casa animado, com orgulho de trabalhar naquela empresa. Pensara até mesmo em fazer faculdade, curso de Mercado Exterior para se adaptar melhor ao seu trabalho, conhecê-lo a fundo. A empresa agia na área de importação e exportação, e ele esperava assim conseguir uma boa carreira. O tempo se cuidou de sepultar todas suas expectativas.
Mário carrega seus pensamentos e suas mágoas: “não sei o que houve comigo. Eu era tão animado, curtia tanto o que fazia. Agora, tem dia que é tão difícil vir trabalhar. Tem dia que a cada passo que fico mais perto do trabalho vai me dando assim um peso no corpo, um desânimo pela alma, parece que carrego todos os problemas do mundo. Minha juventude joguei fora, não curti nada que gostava, sempre deixei para depois as coisas que mais queria para dar aos meus um melhor conforto, trabalhando duro, sem folgas, quase sem férias, e o que ganhei? Meus filhos estão criados, estamos juntos, não temos grandes ranca-rabos, mas falta alguma coisa. Falta alegria dentro de mim!”
O vazio que Mário carrega dentro de si às vezes é preenchido pela presença das pessoas à sua volta no metrô. Sempre gostara do movimento das pessoas, de observá-las no vai e vem, como formiguinhas na labuta diária. Ao contrário da maioria, que dizem não gostar do inferno de gente nas proximidades do natal, gostava de presenciar a animação das pessoas nas compras, na correria pela cidade, pelos shoppings. Era tudo uma festa.
“Cara, aquela garota é uma gracinha. Ei meu velho, péra aí, é uma criança. Que criança nada, cara, presta atenção, tem mais de 25. Já é até casada, olha lá a aliança. Mas que é uma gata isso é”. Enquanto conversa consigo mesmo, Mário observa tudo ao seu redor. Seu mundo é aquele vasto horizonte de pessoas e movimentos que o envolvem.

Dentro do metrô, presta atenção em quem vai e vem. Um estudante abre seus livros e tenta fazer um exercício de lógica, mas o movimento do carro o vence e ele guarda os cadernos.
“Ei, este concurso de histórias do metrô pode ser uma boa. Acho que tenho queda pra escrever. Talvez consiga escrever uma história legal e até possa ganhar um prêmio. Olha lá, tão derrubando aquela casa velha! É uma merda. Ninguém mais valoriza uma obra arquitetônica como aquela. As coisas antigas não têm mais valor”. Alguém está com um jornal aberto e ele lê a notícia de que a inflação está diminuindo. “Só se for no bolso desses sacanas que manipulam os números. Pra esses filhos da mãe qualquer inflação é negativa, porque nada sai do bolso deles. Cambada de filhos da puta!”
Mário lembra que os filhos estão naquele momento indo pra escola. Já trabalham e estudam à noite. O caçula com 16 anos. “Há quanto tempo não consigo encontrar com os meus filhos e bater um papo legal com eles? Também, o que eu vou conversar com eles? Já estou tão ultrapassado. Minhas gírias já caducaram há tempos. Perua ou ônibus? Ir ou não ir, ó dúvida cruel”.

Mário chega em casa, a esposa está em frente à televisão. Ele toma o banho costumeiro, arruma seu próprio lanche – não têm o costume de jantar, a esposa continua em frente à TV. Beija a esposa meio por hábito, ela responde com um leve afago, ele se senta para lanchar e assistir ao jornal. Só se falam durante os intervalos para comerciais. A conversa é superficial, não se aprofunda em nada. Quase sempre falam dos problemas diários, dos filhos, de alguma coisa que necessita ser feita, comprada, providenciada.
Mário olha aquele quadro de que faz parte, o sanduíche parado no ar no caminho para a boca, e parece-lhe que é algo muito distante. “Onde foi que eu me perdi?” - pensa. “Esta casa não parece ser minha. Esta vida não se parece com a minha”. Mário perde o apetite, joga o lanche no lixo da cozinha, limpa os resíduos e se dirige para o quarto, enquanto a esposa fica assistindo a novela. Mário detesta novelas. Não pelas novelas, mas pela atenção exagerada e exacerbada que sua família destina a elas. Quando estão assistindo novelas, ninguém pode falar, todos têm de se calar, a TV é o centro do lar e das atenções.
O desânimo volta. Ele se deita na cama, tenta ler uma revista antiga, procura um livro na prateleira, mas não é capaz de se prender a nenhum. Até seu hábito de leitura havia sido vencido pelos anos. “Seus gostos foram todos encaixotados e lançados em algum buraco fundo, em local desconhecido”, novamente verseja.
Esgotado, mais pelo cansaço interior que físico, Mário cai no sono. Sem sonhos.

Mário abre a porta e ouve a TV ligada. Na entrada já descalça os sapatos e o toque com o chão frio lhe dá um ânimo renovado. “Estar em casa, este é o maior prêmio”! Telma, cheguei, grita. Entra para o banheiro. Toma um banho morno e demorado. As energias negativas parecem ter ficado porta afora. Veste uma roupa velha. Detesta pijamas. Acha que é coisa de velho decrépito. Shorts, camisa pra dentro, meias e sandálias, caramba, é a imagem da decrepitude! Vai à cozinha e prepara seu lanche. Às vezes prefere fazer um mexido com as sobras do almoço, mas é raro. Senta-se ao lado da esposa que assiste o jornal. Dá-lhe um beijo chocho, costumeiro. A esposa lhe responde com um afago também sem qualquer calor, habitual.
Enquanto come o sanduíche, momentos como aqueles voltam à sua mente, como quando eles começavam a assistir algum programa de TV, iam se fazendo carinho, e acabavam se amando ali mesmo no tapete da biblioteca. Os anos não perdoaram. “Nossos carinhos são tão automáticos. Falta algo neles. Falta vida, envolvimento”. Olha para a esposa e um carinho imenso cresce dentro dele. Ainda sente um enorme tesão pela mulher que preencheu seus dias. Seu corpo não tem mais o brilho de outrora, mas o prazer do toque de seus lábios, seus dedos, o corpo quente e nu colado ao seu é que o reanima, mesmo que esporadicamente. Gostaria de fazer sexo mais amiúde.
O jornal acaba. Inicia-se a novela. “Droga. Esta merda!”. Parece-lhe que a casa se agiganta. O vazio que enche sua alma faz o peito doer. Deixa a esposa em frente a TV e tenta ler alguma coisa. Com a revista e depois o livro aberto nas mãos, a atenção se dispersa,
Seus pensamentos o levam longe, um cansaço interior dele se apodera. Parece que todos os sonhos esquecidos pesam mais que todos os realizados. “Prefiro me arrepender de fazer do que de não fazer”, dizia na sua juventude, “pois fazendo, terei tentado, mas não fazendo, sempre vou achar que perdi algo valioso”.
- É, mas eu deixei tudo para trás. Meus sonhos, meus ideais, meus projetos. Esquecidos, jogados em algum canto, encaixotados e enterrados em algum quintal de algum lugar desconhecido de minha alma ferida e rasgada, e agora meu peito se dilacera e, lembranças que teimam em voltar, para me cobrar o que não fui capaz de construir, o que não tive coragem de buscar, os sonhos que deixei de sonhar. E eu aqui, só e abandonado, em meio a tantas pessoas que por mim passam a sorrir, não sei se de mim ou para mim, tento agarrar os dias, os minutos que deixei atirados no caminho, que eram meus e para ninguém serviram, e viraram poeira no relógio de minha vida. Mas eles passam por e através de mim, como fantasmas a me cobrar dívidas não pagas: a minha felicidade.
Mário acorda sobressaltado de seu delírio. Esgotado, desanimado consigo mesmo e com o rumo que sua vida tomara.
“Vida mais besta, vida sem alma”! Pensa, enquanto cai pesadamente no sono.









  
SOLIDÁRIA
SOLIDÃO

Antes mal acompanhada que só, pois a única vantagem de se estar só, é poder ir ao banheiro e não ter que fechar porta”

Sérgio Porto









  Sexta feira, 19,00 horas.

Simone chega em casa depois de um dia cheio de trabalho. Cansada, fecha a porta, joga as chaves do apartamento sobre a mesa da sala, a bolsa vai parar sobre o sofá, os sapatos são atirados pelo chão.
Ela se dirige à cozinha, abre a geladeira, se serve de um copo com água e o toma em pequenos goles. Liga a TV, passa pelo rádio e o liga. Abre todas as janelas. Precisa de ar. Sente como se o apartamento fechado durante o dia consumisse todo o oxigênio, e não lhe sobrasse nada para respirar.
Tira a roupa e joga sobre a cama. Veste uma camiseta de malha comprida, que a cobre até os joelhos.
Vai ao banheiro, apanha os vasos de begônia e violeta, rega-os e os deixa na janela do quarto para tomar ar. “Elas também precisam respirar”. Volta à cozinha, retira da geladeira uma lasanha congelada - porção para um, legumes, verduras, algumas frutas e uma garrafa de vinho tinto ao meio. Deixa tudo sobre a pia, serve-se de meia taça de vinho e toma em pequenos goles enquanto lava cuidadosamente os legumes, depois as frutas. As verduras são microscopicamente investigadas à procura de lesmas ou outros animais da espécie. Abre a lasanha, pega na geladeira uma caixa de leite longa vida, cobre a lasanha com leite e deixa-a sobre a bancada da cozinha, enquanto liga o forno, deixando-o no pré aquecimento. Coloca os legumes e as verduras dentro de uma bacia plástica com vinagre, cobre-a com uma tampa de panela. Serve-se de mais meia taça de vinho, devolve-o à geladeira. Olha distraidamente para o relógio da parede: 19,23.
Volta à sala, desliga a TV, recolhe a bolsa e os sapatos, entra no quarto, recolhe as roupas de sobre a cama e as coloca no cesto de roupa suja no banheiro. Recolhe na janela as plantas, devolve-as ao banheiro. Tira a meia-calça que ainda usava e a coloca no cesto. Guarda a bolsa no armário do quarto e quando vai fechar a porta, olha de rabo de olho para o prédio em frente.
No segundo andar, uma lâmpada se acende. Simone ocupa-se de arrumar a cama, já perfeitamente arrumada. Pega os sapatos, abre novamente o armário e os guarda lá dentro, atenta ao apartamento do prédio em frente.
No prédio em frente, as cortinas são puxadas, as janelas são abertas, e Simone pode ver a silhueta de uma mulher jovem assim como ela, que como ela guarda as roupas no armário e se dirige a um cômodo paralelo, que Simone desconfia ser o banheiro, saindo do seu campo de visão.
Simone se lembra do forno. Vai rapidamente à cozinha. Coloca a lasanha no forno. Pega no armário o liquidificador e bate as frutas e alguns legumes. Rasga as verduras e corta alguns tomates, retira da geladeira um vidro de azeitonas e palmito e prepara uma salada.
Coloca a mesa com capricho. Talheres, prato, guardanapo de linho, a salada, o suco. Volta à cozinha, verifica o assado. Desliga e fecha o forno, deixando lá dentro a lasanha. Pega na geladeira a garrafa de vinho, serve-se de outra meia taça e guarda a garrafa. Fecha a geladeira, para, indecisa. Abre novamente a geladeira, retira de lá a garrafa de vinho e a leva para a mesa.
Retira do forno a lasanha, coloca-a na mesa sobre um suporte de panelas decorado. Toma um grande gole do vinho e enche novamente a taça. Liga a televisão sintonizando num telejornal. Assenta-se à mesa. Toma meio copo do suco de uma só vez. Serve-se de uma fatia da lasanha, um pouco de salada.
Leva à boca a primeira garfada. Delicioso. Suculento. A maciez, o calor e o tempero do jantar parecem reanimá-la. A segunda garfada parece ainda melhor, já não está tão quente, não lhe queima a boca. Pega o copo de suco, leva-o à boca. O sabor do líquido pastoso parece-lhe tirar o prazer do prato principal. Deixa de lado o copo de suco. Toma delicadamente na mão a taça de vinho, olha através dele e toma um gole bem pequeno, delicada e lentamente. Mantém o líquido por alguns instantes na boca e depois o engole, sentindo-o escorrer pela garganta bem devagar, de olhos fechados. Coloca sobre a mesa a taça, e serve-se de mais um pedaço da lasanha. A mão para no ar a caminho da boca. Os olhos parecem arder, ela sente um aperto no peito, a respiração parece ofegar, os olhos marejam, e ela sente-se cansada e só, como se fosse a última pessoa no planeta.
O jantar perde o sabor, e ela o apetite. Sente uma vontade desesperadora de atirar tudo à parede, prato, jantar, vinho, copo. A televisão continua a falar sem parar. O choro vem, e ela se joga no sofá, abraça e enfia o rosto nas almofadas, abafando o choro que já é convulsivo.
Depois de alguns minutos se acalma. Levanta-se, recolhe e guarda o que seria seu jantar, limpa a cozinha, a mesa da sala, deixando tudo um brinco. Desliga a TV e se dirige ao quarto. Passa despistadamente pela janela e olha para o apartamento do prédio em frente. A outra está em frente à TV lanchando. Ela parece pressentir a presença de Simone na janela. Levanta o olhar em direção à janela de Simone, dá um leve sorriso e faz um “oi” sem som. Simone responde da mesma forma, com um sorriso, um leve tchau com a ponta dos dedos e um oi. Sua noite parece melhorar com aquela presença. O peso que lhe vai na alma parece diminuir. Vai para o banheiro, abre o chuveiro e deixa a água escorrer enquanto prende o cabelo e tira a roupa. Debaixo do chuveiro, deixa a água bater com força nas suas costas, nos seios, nas coxas, no rosto. Enquanto se lava, revê a sua vida.
Independente profissional e financeiramente, comprara aquele apartamento, grande, de três quartos com a ideia de dividi-lo e às despesas com outras garotas na mesma situação. O importante não era o dinheiro, uma vez que ganhava o suficiente para si e para suas despesas, inclusive a prestação do ap. Encontrara algumas garotas que toparam dividir o apartamento com ela, mas não dera certo. Ou eram geniosas, ou muito desorganizadas, ou só queriam “venha a nós”, ou isso ou aquilo, o fato é que não deu certo. E Simone ficara sozinha, naquele apartamento gigantesco. Tinha dia que era um desespero voltar para casa. Parecia que o ap. era tão grande que ela se perdia lá dentro. Não sabia o que fazer primeiro. Se arrumava a parte que ocupava no dia a dia: seu quarto, seu banheiro, a sala, a cozinha, se deixava o resto do apartamento sem arrumação, se o arrumava diariamente. Não conseguia tomar decisão sobre o assunto. Acabou arranjando uma arrumadeira que vinha de quinze em quinze dias, arrumava tudo e deixava às mil.
Mas a arrumação em vez de deixar Simone feliz parece que tirava dela a última esperança. Ficando sem limpar era como se alguém fosse aparecer, e o apartamento de repente pudesse se encher de gente, de vozes, e sua solidão iria embora. Mas o que ia embora era sempre as vozes, a presença dos amigos. E ficava a solidão. Aterradora, enorme, desesperadora, angustiante.
Simone já pensara em vender o apartamento e comprar outro menor. Já tentara dividi-lo com um companheiro. Já pensara em comprar um cachorrinho, um periquito, um peixinho, uma tartaruguinha ou até mesmo ter uma criança... Mas nada funcionara. Ainda! A compra do apartamento menor só iria mudar o endereço da solidão, o companheiro se mostrara um aproveitador, e as outras alternativas implicavam em obrigações com que ela não podia arcar. Seu tempo não permitia. Muitas noites saía sem destino, à procura de algo ou alguém que enchesse seu vazio. Seu trabalho lhe dá prazer, alegria, dinheiro, sucesso. Mas o vazio está lá, enchendo sua alma.


Sexta feira.

L. chega em casa sentindo como se carregasse o  mundo nas costas. O cansaço não é só físico. A noite de sexta é sempre a mais difícil da semana. Diariamente L. chega em casa, come o sanduíche que traz da rua, quando já não o comeu no caminho, dá uma arrumada mal mal no apartamento, esconde as coisas da área de uso para não ficar tropeçando em nada, joga a roupa suja num cesto no banheiro, limpa a pia pra não encher de baratas –“Argg, detesto baratas. Bichos nojentos!”- nem formigas. Recolhe e guarda o lixo para jogar fora na manhã seguinte, toma banho, na maioria das vezes toma um sorvete ou come algum doce diet enquanto vê televisão sem se concentrar em qualquer assunto e quando não dorme ali mesmo, se arrasta até a cama e apaga até o amanhecer, quando o despertador barulhento a acorda para mais “um dia de martírio”.
Mas a Sexta feira é diferente.
O trabalho de L. não é dos piores. Dá para sustentar seu dia a dia, seus gostos e seus luxos sem muito aperto. Não trabalha pouco, mas dizer que trabalha demais também é exagero. Chegar em casa  quase sempre é a parte mais dolorosa do dia.
L. chega em casa e o vazio que enche os cômodos do pequeno apartamento parece crescer dentro dela, inchando como um balão prestes a estourar. O peito dói, a saudade de casa bate como um martelo na bigorna de ferro, retinindo nos ouvidos e em todo o seu corpo. L. às vezes se perde a buscar em cada canto do apartamento, como à procura de alguém que nunca estivera lá.
Quase sem se dar conta, L. olha pela janela, em direção ao prédio em frente. Lá ela pode ver que a moça do terceiro andar já chegou. As flores já estão na janela, as janelas já estão todas abertas, as luzes já estão todas acesas. Um leve sorriso tenta aparecer nos lábios de L. A moça do prédio em frente é sua companhia muda e distante nas noites de solidão e medo. Mesmo não sabendo quem é ela, seu nome, onde trabalha, nada, L. sente que a moça do prédio em frente é a única pessoa no mundo todo que sabe o que se passa com ela, que é capaz de enviar-lhe um pouco de carinho, de compreensão, de apoio. A presença da outra é capaz de fazer com que a noite de L. se torne menos longa.
Mas a Sexta feira é mais difícil. L. sabe que o fim de semana será longo. Nada será capaz de preencher o vazio que enche o pequeno apartamento. L. já tentara completar seu tempo com várias atividades, filmes, livros, até comprara com dificuldade um computador para conversar com outras pessoas pela internet, mas o vazio continuava. A outra preenchia as noites de L. De longe, sua distante presença a confortava durante a semana, mas nos sábados e domingos...
L. então saía toda sexta à noite. Procurava a companhia de amigos, conhecidos, colegas de trabalho. Saía na sexta e só voltava no domingo à noite. A noite de Sexta não tinha fim. Durava no mínimo 48 horas. No Domingo L. chegava em casa, desmaiava na cama depois de um banho quente e estava nova para a Segunda.
Embora L. não tomasse bebidas alcoólicas, nem fumasse, muito menos fizesse uso de drogas, era viciada em adrenalina. Não tinha medidas para o inesperado. Tomava decisões súbitas e aceitava quase  qualquer proposta. Certa vez acordara na praia, a mais de 500 km de casa. Demorara alguns minutos para se localizar, até se lembrar que chegara ali com alguns amigos que a convenceram a passar um fim de semana diferente. Na manhã seguinte seria feriado. L. não sabia onde estava hospedada. Procurando pela praia localizou seus amigos, todos bêbados. Depois de acordá-los o louco fim de semana continuou.
Assim, todas as noites L. procurava pela outra na janela. Só depois de identificar sua presença amiga se sentia em casa. Era como se a outra estivesse ali com ela. Muitas vezes havia se pegado a conversar com a outra, contando seus sonhos, suas mágoas, suas dores. A outra contava-lhe de suas frustrações, de seus sonhos,. De seus amores. L. nunca tivera amores. Sua solidão se fazia ainda maior porque lhe parecia que ninguém a queria. A única pessoa que parecia ser sua amiga de verdade, sem cobrar-lhe nada era a outra na janela. Nunca haviam se falado nem mesmo se encontrado na rua, ou no supermercado, ou na igreja, ou nos bares do bairro, mas sua presença no apartamento do prédio em frente enchia de cheiros e de sons o seu pequeno lar. Houve dia em que L. colocou à mesa talheres para a outra, mas com medo do ridículo da situação, os recolhera. L. criava situações imaginárias, como quando era criança e tinha sua amiga invisível, mas a presença da outra era verdadeira, real. Isso a confortava.
A noite chegava, o sono vinha e carregava L. para o mundo dos sonhos. E a outra quase sempre ia junto.
Mas a Sexta era sempre mais difícil.

Simone sai do banho enrolada na toalha. Abre o armário para tirar uma roupa limpa e olha para o apartamento da outra. Ela já não está mais lá. Sexta feira. Simone sabe que ela não fica em casa nos fins de semana. Não sabe nada da outra. Vai para casa dos pais, pensa. Ou talvez para casa de amigos, ou do namorado. Não, namorado não. Ela nunca vira nenhum homem entrar no apartamento da outra. Alguns amigos e amigas, mas sempre em grupos, nunca nenhum homem sozinho.
Desde que a outra viera morar no apartamento do prédio em frente, Simone não mais se sentia tão solitária. A outro vivia só, assim como Simone. Seus hábitos eram moderados assim como os de Simone. Saíam e chegavam mais ou menos no mesmo horário. Arrumação dos apartamentos, refeição, hora de dormir, batiam mais ou menos até onde Simone conseguia perceber.
O prédio de frente tinha saída para a rua de baixo, paralela à rua do prédio de Simone, e elas nunca se encontravam. Mas mesmo assim, suas vidas corriam juntas, paralelas, mas juntas.
Do seu apartamento, Simone podia ver os movimentos da outra, segui-la da janela por quase todo o ap. A outra podia ver parte dos movimentos de Simone, e assim se conhecerem. Não se encontravam, não podiam se falar, devido à distância das janelas, mas viviam como se houvesse um diálogo mudo entre elas.
Simone sabia que podia contar com a presença da outra de domingo à noite até quinta, pois na sexta ela saía para o fim de semana fora. E assim, o fim de semana de Simone era um lixo.
Simone não sabia o nome da outra, seu telefone, o que ela fazia, onde trabalhava, se estudava, nada. Mas sua presença, sua companhia silenciosa na outra janela dava a Simone uma nova coragem. Sabia que não estava só. Não era a única alma solitária do planeta. Alguém vivia parte de seu drama. Às vezes se pegava a bisbilhotar a outra pela janela, e a via chorosa, com uma carta na mão, ou escrevendo alguma coisa. Ela lia jornais, assistia TV, novelas, mas dormia cedo. Sempre com a janela aberta.
Simone sabia que a outra também se interessava por ela, pois já a havia apanhado olhando de volta. Muitas vezes sentira uma vontade louca de passar seu telefone para a outra, pedir que ela lhe ligasse. Chegou mesmo a escrever seu telefone num papel de pão, com letras bem grandes, e as palavras: me ligue, mas nunca tivera coragem de colocar a placa na janela. Morria de medo e vergonha do que a outra poderia pensar. E se alguém mais visse o cartaz? O que iria pensar dela? Que ela era uma oferecida. E se a outra pensasse que ela era sapatão? O cartaz ainda está no fundo do armário, e toda vez que ela ia pegar seus sapatos, olhava para ele, mas não tinha coragem de jogá-lo fora.
Nas noites em que ia fazer compra no supermercado perto de casa, sempre tinha a esperança de encontrar a outra. Ficava a imaginar um diálogo entre elas.
- Oi, como vai?
- Eu sou sicrana. Não leva esta massa de tomate. Ela não dá cor nenhuma.
- Obrigada.
O diálogo espicha noite a dentro, as duas conversando à porta do supermercado. O supermercado fecha e as duas continuam lá. Ninguém tem coragem de convidar a outra para seu apartamento. Mas a amizade das duas está selada. Novos encontros virão.
Simone nunca se encontrara com a outra. Ela tomava ônibus, Simone ia de carro ao trabalho.
Simone comia bem, pratos prontos ou que ela mesma fazia, mas requintados, tomava vinho, cerveja, sucos caros. A outra tomava refrigerante, comia sanduíches, morava num “apertamento”, como se dizia. Tinha uma vida dura. Mas sua presença, silenciosa, solitária, lá, do outro lado, na outra janela, saindo para a outra rua, paralela, fazia solidárias as suas solidões.































  





AS
CINCO
MARIAS

E as lágrimas e os risos as moldaram com a resistência das rochas e a doçura de um beijo”














  Nenhuma delas se chama Maria. Quando jovens, e a amizade estava apenas no início, todas adoravam ler aqueles livrinhos de bolso, principalmente as histórias da Gisele Monfort, espiã da CIA. Como todos os espiões companheiros da heroína se chamavam Johnny, elas se denominaram “Maria”, e assim ficou.
Marta, “como sempre, pra variar”, diziam as amigas, foi a última a chegar. Chegava espavorida, correndo, jogava as coisas sobre uma cadeira ou sobre a mesa e já ia disparando a falar, quase sempre interrompendo quem estivesse falando, sem ao menos saber o assunto.
Tonia, Selma e Terezinha bebericavam chupando pelo canudinho uma bebida de cor azulada com um daqueles chapeuzinhos sem utilidade, quando Marta se jogou numa cadeira em frente.
- Cadê a Luisa? Ela ainda não chegou?
- Claro, né Marta, ou você achou que tinha perdido o título de retardatária? - pergunta Tonia.
- Sei lá. De repente! E aí, onde ela está? Ela tá legal?
- Foi ao banheiro. Legal, legal não tá não - responde Terezinha. Chegou aqui com uma cara meio de choro, como se o marido tivesse morrido, aí foi ao banheiro, já tem uns dez minutos.
- Bom mesmo seria se ele tivesse morrido - diz Selma, que continuava a chupar o canudinho, como se a bebida fosse a coisa mais importante do mundo. Aquele ali, se tivesse morrido, tinha feito sofrer menos a Luisa. Ô traste sem serventia!
- É! É tão sem serventia que nem grana pra dividir com ela ele tem; ô mão de vaca vagabundo!
- Aí, vamos mudar de assunto que ela vem vindo, diz Terezinha.
Uma loira aparentando entre 45 e 50 anos, como todas as outras, com um corpo bem cuidado, mãos pintadas, vestindo jeans e uma blusa de malha verde bem comportada, óculos escuros, puxa uma cadeira da mesa ao lado e se senta em frente a Marta. Abre a bolsa, retira um maço de cigarros de filtro branco e uma piteira, coloca nela um cigarro, acende-o e dá uma longa tragada. Vira o rosto para o lado, sopra a fumaça evitando as amigas, fecha a bolsa deixando o maço de cigarros sobre a mesa.
Marta a cumprimenta e interroga.
- E aí, Lu, como foi lá?
- Marta?! - Repreende-a Tonia, mas na verdade tão curiosa quanto a amiga e todas as outras.
- Não importa. Eu tenho mesmo que falar - Fecha os punhos e levanta-os à altura do rosto, trinca os dentes e faz um ruído de rosnado, como se estivesse a ponto de agredir alguém - Que ódio, que ódio, que ódio! Vocês acreditam que aquele desgraçado queria ficar com as minhas filhas? Pra quê? Deixá-las passar fome? Ele nem dá conta de se sustentar! Se eu bobear vou ter que dar pensão a ele.
- Ele pediu? Pensão?- Pergunta horrorizada Marta.
- Não, ele não pediu. Mas se eu der mole com ele, ele vai me pedir dinheiro todo dia. Rrrrrrrr!
Selma acaba o drink, acena ao garçom pedindo outro, se serve de uma batatinha numa porção sobre a mesa e diz, mastigando a batata.
- É bom você sentir raiva dele. Assim você consegue se proteger e não fazer o que ele quer. Não dá mole que eles não merecem.
Marta se serve de uma batata, cobre-a toda com o catchup, chupa o dedo e depois o limpa com um guardanapo. Ela tem os movimentos rápidos, largos, ao contrário das amigas que são mais comedidas, mais “suaves” nos movimentos. Toma um gole de cerveja que o garçom havia servido juntamente com o drink de Selma.
- Não é moleza, não. Vocês não se lembram da Tê, né Tê. Não foi difícil pra caramba?
- Foi. Já tem mais de dois anos, e às vezes ainda é complicado. Não vou dizer que é fácil não, amiga, mas também não é o fim do mund -, diz, colocando a mão sobre a mão da amiga. Um leve sorriso surge nos seus lábios - Vou te falar: foi o início de uma vida nova, só demorou um pouco pra eu entender e assumir.
- Eu não estou assim tão desesperada. Só parece que é tão, tão, sei lá!! Parece que eu ainda não aterrissei. É como se eu estivesse no ar, como se minha vida toda tivesse parado e eu tivesse que começar do zero. É estranho e decepcionante.
- É isso aí. Foi assim mesmo comigo. Parecia que eu estava em órbita - diz Terezinha enquanto acaba de engolir uma fatia de carne. A primeira noite que eu dormi sem o Paulo depois da assinatura do divórcio foi a coisa mais estranha da minha vida. Olhe que eu já vivia separada dele há mais de um ano. Mas sei lá, não sei se eu tinha alguma esperança que as coisas pudessem voltar atrás, ou se eu não tivesse mesmo entendido o que estava acontecendo, só sei que naquela noite eu me senti realmente sozinha, abandonada, atraiçoada, como se eu fosse o único ser do planeta. A cama me pareceu tão grande que eu não consegui dormir nela. Fui dormir na cama da Miriam. Isso depois de chorar até não me aguentar mais. Ir trabalhar era a coisa mais difícil da minha vida. Eu não queria ver nem falar com ninguém, coisa que não tinha acontecido no tempo que a gente tinha ficado separado. Foi barra. Engraçado como é a vida. Quem mais me apoiou e me tirou do buraco foi justo essa minha amiga, né Luisa? – novamente coloca a mão sobre a da amiga e lhe faz um carinho, com um pequeno sorriso no rosto. Luisa retribui o sorriso, toma a mão da amiga, lhe dá um suave beijo e volta-se para as outras.
- Na verdade eu estou tirando um grande peso das costas. Agora só espero que as coisas possam entrar nos eixos e eu possa tomar novo rumo na minha vida, no meu trabalho. Triste é, duro vai ser, mas eu tenho que cuidar das meninas e elas agora só têm a mim.
- Agora, não! Elas sempre tiveram só a você - diz Selma.
- Pode ser. Financeiramente pode até ser. Mas no dia a dia ele estava sempre ali pra dar uma força, apoiá-las numa necessidade, dar um carinho, coisa que eu nem sempre fui capaz de fazer.
- Ei garota - manifesta-se pela primeira vez Toni - Você não tem que pensar nada disso não. O cara tava lá pra dar carinho, apoio, uma força e sei lá o que, e você nem tanto, porque você tinha que trabalhar por você e por ele pra sustentar, inclusive os vícios dele! Não vai ter dó do canalha não. Ele não merece. Você não merece. Aliás, você nem suas filhas merecem. Ah, e tem mais. Suas filhas já estão grandes, já podem cuidar de si pra que você possa curtir um pouco mais a vida daqui pra frente.
- Eu sei de tudo isso. Eu me falo tudo isso o tempo todo. Eu vim da vara de família até aqui me falando que minha vida vai ser melhor sem o Denilson, que as meninas vão me dar o apoio que eu preciso, que elas viram o que eu passei com o pai delas, que isso, que aquilo! - Joga o guardanapo que usara para limpar os olhos com força na mesa. Mas que merda, porque a vida tem que dar tanta rasteira na gente?
Terezinha, que estava ao seu lado, abraça a amiga com carinho.
- Não tem que ter medo de chorar não. A gente fica mesmo uma pilha, sensível, frágil - pega um copo de água e oferece a Luisa que toma um pequeno gole e devolve o copo à mesa. Luisa se separa da amiga, tira os óculos e limpa novamente os olhos com o guardanapo.
- Quer saber, que se dane! - vira-se para Tonia que estava do outro lado da mesa - E aí, você vai mesmo pra Europa?
- Vou. Já comprei as passagens. Vou direto pra Lisboa. Lá eu vejo o que dá.
Marta se serve de outra cerveja enquanto quebra em partes minúsculas um palito de dentes.
- Você é é doida! Tomar um avião, embarcar pra Lisboa sem saber se vão deixar você entrar lá ou não! Eu não entraria numa roubada dessas. E você já “viu” falar no tráfico de mulheres, que eles pegam nos aeroportos, tomam os passaportes quando veem que estão sozinhas, e obrigam as mulheres a trabalhar como prostitutas?
- Credo, Marta. Você é só pessimismo! Vê se não azara a garota - repreende Selma. Isso não vai acontecer com a nossa amiga, não. Ela vai é detonar na Europa. Vai ser a quarentona mais gostosa do velho mundo.
- É isso aí - responde Tonia, batendo a mão no rosto da amiga, como fazem os adolescentes e dando uma rebolada na cadeira. Eu vou é de-to-nar naquela Europa!
- Só tem maluca aqui. Ô gentinha mais maluca - diz Terezinha. Além de tudo vocês são bem desinformadas. Pra nós, aqui dos terceiro-mundinhos, um visto de entrada nos States abre caminho em qualquer lugar do mundo civilizado. E como a nossa nobre poliglota já morou lá e tem o green card, ela não terá dificuldades de entrar na Europa, sendo por Portugal, França, Itália ou qualquer buraco.
Marta, Tonia e Selma se entreolham fazendo gestos de quem não entenderam.
- Qualé, Tê. Que bicho te picou?
- Às vezes não picou, e esse é o prob - pilheriza Marta. Tá de tpm garota?
- Vocês são incultas demais - Ironiza Terezinha, fazendo um muxoxo de desânimo.
- É, ela tá de tpm - diz Selma.
- Sei lá. A Maria Tereza veio me dizer que quer se casar. Apenas seis meses de namoro. O namorado dela até que é um sujeito legal, dá atenção pra ela, e tudo mais. Mas eu fico morrendo de medo. Já passei por tanta dificuldade, com elas, com o Paulo. E agora a Luisa se separando, parece que eu vejo tudo se passando com ela também, e fico morrendo de medo. Ela é tão novinha! Não sei pra que se casar agora. Pode se formar primeiro, começar a trabalhar, formar uma carreira.
As amigas se entreolham.
- Ô Tê, qualé - diz Tonia. A Luisa não serve de referência.
- Por que não? Pergunta Luisa. Por acaso eu sou diferente de alguém aqui?
- Não é assim, referência como pessoa. É referência como casamento. Afinal seu casamento nunca foi, bem, nunca foi um casamento comum, dentro dos padrões sociais habituais.
- Ei, ei, que que tá havendo? Como assim “nunca foi um casamento dentro dos padrões sociais normais?” O que vem a ser um casamento dentro dos padrões sociais normais?
- Luisa, não enche. Depois eu tento me explicar. Tê, você tem que acreditar que você e o Paulo, mesmo o casamento de vocês tento terminado, ensinaram o melhor de vocês a ela, e que ela vai levar pro casamento dela só o de bom que ela viveu.
- Eu às vezes tento me dizer isso. Que ela é uma boa menina, ajuizada, inteligente, auto suficiente, mas mesmo assim morro de medo. É filha, vocês sabem como é, não?
- Tê, um cara uma vez me disse que prefere se arrepender do que fez do que do que não fez. Porque o que fez ele sempre vai saber que deu o máximo de si, mas o que ele não teve coragem de fazer ele sempre vai achar que poderia ter se saído bem. E tem mais, ninguém, em lugar nenhum do mundo vai viver ou deixar de viver algo por causa da experiência ou do que viveu outra pessoa, sendo pai, mãe, amigo ou quem quer que seja.
- Mesmo assim eu fico morrendo de medo. É lógico que se ela quiser mesmo casar, eu não vou impedir. Vou fazer o que eu puder por ela e vou rezar todo dia pra que dê certo e que eles sejam felizes. Eles dizem assim: “áh mãe, se não der certo a gente separa. A senhora não separou?” Mas a separação é tão sofrida. Você nunca se casou não sabe como é.
- Eu nunca me casei, mas tive cinco homens e me separei deles, também foi sofrido. Só não teve os trâmites burocráticos.
- Ainda assim, você não teve filhos, não sabe como é uma separação quando tem os filhos no meio.
- Eu tive uma filha - diz num suspiro Tonia, enquanto toma um gole de cerveja.
Luisa, que tomava um gole de cerveja, com a surpresa cospe-a com força. As amigas, exceto Selma se surpreendem e quase gritam ao mesmo tempo.
- Teve? Você teve uma filha, quando? Como é que ninguém sabe disso?
- Eu sabia - diz Selma.
- Sabia? Diz Marta. E como não contou para ninguém?
- Sei lá. Ela pediu segredo, nunca surgiu uma oportunidade, nem lembro mais.
- Conta aí, Tonia. Como foi essa história? - Pede Luisa, já um pouco recomposta da conversa inicial.
- Foi quando eu vivi no Equador. Eu conheci um atleta. Ele era bem legal, carinhoso, cuidava bem de mim, me tratava como se eu fosse uma rainha. Queria porque queria que a gente tivesse um filho. Foi meu segundo homem. Eu tinha me separado do Reginaldo, aquele cara que eu conheci na praia de Búzios lembram? Pois é. Aquele sim, era um traste! Não gosto nem de me lembrar daquele cara que tenho vontade de esmurrá-lo. Bom, o Raul, o equatoriano, queria que a gente se casasse. A gente já estava junto há mais de um ano, vivendo juntos, quando eu engravidei. Eu não tinha certeza se queria ter um filho, mas já que veio, pensei, deve ser uma boa. Vamos curtir. E foi mesmo uma curtição. Ele continuava carinhoso, cheio de cuidados comigo e com o bebê, e as coisas eram bem legais. Eu tava trabalhando numa escola infantil, a meninada e as mães me animavam, ofereciam ajuda, eu parecia ser alguém da comunidade. Quinze dias antes do prazo do bebê nascer, Raul teve que viajar. Ele trabalhava com exportações. Enquanto conta, Tonia torce um guardanapo entre os dedos, nervosamente. Bom, ele viajou, e eu dois dias depois comecei a sentir sintomas parecidos com dores renais. A diretora da escola me recomendou um médico local. Fui. Fiz os exames que era possível fazer no local. Deu infecção urinária. Ele me receitou alguns remédios, as mães me receitaram chás, e eu, na dúvida, tomei todos, mas a dor não passava, só piorava. O médico não queria tomar nenhuma atitude sem a presença de Raul, e eu fui ficando. Com uma semana de horrores, ele chegou. Me pegou e me levou ao hospital de uma cidade maior, que fica a mais ou menos sessenta quilômetros da que a gente morava. Foi a pior viagem da minha vida. Além da dor que eu já sentia, os solavancos da estrada cheia de buracos aumentavam mais ainda a minha dor. Quando chegamos, o médico, que era amigo de Raul, foi logo me olhando e dizendo que era caso cirúrgico, que ele iria tentar salvar a criança e a mãe, mas que não podia garantir, porque eu estava com uma infecção no útero, e não dava nem para anestesiar. Não teve outro jeito. Ele fez a cirurgia assim mesmo. Parece que até hoje ainda sinto as dores, a carne sendo dilacerada, como se uma fornalha estivesse acesa dentro de mim, a dois mil graus. O bebê nasceu forte. Era uma menina linda, olhos negros como o pai, mas clarinha como eu. Parecia que estava tudo bem. Eu perdi meu útero. Não houve jeito. Dormi dois dias à custa dos remédios, do cansaço da cirurgia e de tudo mais. Raul era só cuidados. Fiquei quatro dias no hospital, e o médico me mandou para casa. Ele dizia que no hospital eu tinha mais chances de pegar outra infecção que melhorar. Recomendou medicação, alguns chás caseiros e banho. Melina, nossa filha estava linda quando voltamos para casa. Mas quando chegamos lá, ela começou a chorar, chorar, e nada fazia ela parar de chorar. A gente tentou de tudo. Quando não sabíamos mais o que fazer, e eu já tinha melhorado um pouco, voltamos ao hospital, e ao amigo de Raul. Melina tinha pegado de mim a infecção antes de nascer. Ela viveu apenas mais três dias. Eu e Raul não conseguimos superar sua morte. Daí pra frente não conseguimos mais nos entender. Brigávamos por qualquer motivo, e até sem motivo. Um dia, peguei minhas coisas, deixei um bilhete para ele, nem tive coragem de me despedir, e voltei ao Brasil. Nunca mais soube dele, nem de qualquer coisa ou pessoa de lá.
Tonia termina a narrativa, as amigas, caladas não sabem o que dizer. Tê lhe dá um abraço e lhe afaga os cabelos. Um silêncio paira no ar. Pra cortar o silêncio, Tonia, assim do nada, vira-se para Tê e pergunta.
- Me diz uma coisa. Qual foi o pior momento de sua separação?
Terezinha olha para a outra, toma um gole da cerveja, serve-se de um pedaço de carne de tira gosto antes de responder.
- Eu tinha mais ou menos uns dois anos de separada. Como eu já contei, quando assinei o meu divórcio, parecia que a minha vida não tinha mais futuro. Parecia que era o pior momento da minha vida. Um dia, já tinha mais de um ano, eu estava sozinha em casa e resolvi arrumar o guarda roupa, colocar os retratos e outras coisas no lugar, quando o meu álbum de casamento caiu no chão e se abriu na página em que eu dava aquele tradicional beijo no meu marido. Antes, se eu visse aquelas fotos eu chorava e chorava, abraçada ao álbum. Mas naquele dia nada aconteceu. Eu não senti nada. Mas nada mesmo! Era como se aquelas fotos fossem de outras pessoas, que não tivesse nada comigo. Foi aí que eu percebi que meu ex-marido já não significava nada para mim, que ele era uma pessoa totalmente estranha à minha vida. Foi um momento de suprema alegria por eu perceber isso, mas também foi o momento mais triste, porque de repente foi como se minha vida tivesse sido até aquele momento uma grande mentira, como se eu tivesse perdido todos aqueles anos que a gente vivera juntos. Aí sim, eu chorei. Mas foi um choro que lavou minha alma, e a partir deste dia eu realmente comecei a viver uma nova vida.
As amigas continuam ainda por algum tempo à mesa, trocando assuntos e jogando conversa fora, depois se levantam e cada uma toma seu caminho, certas de que o tempo, que já lhes tirara muita coisa, filhos, maridos, companheiros, familiares, jamais poderá lhes tirar suas amizades, e elas continuarão sempre sendo as Cinco Marias.



















FRIO
AÇO

E a vida esvaiu-se dele,
como água de uma jarra quebrada”














O sol da tarde projeta a sombra nas paredes de tábuas, por onde entra sem cerimônia a friagem da noite próxima. A sombra se move lentamente e parece palpitar. Nela um homem e sua arma se fundem num desenho indecifrável.
O frio do aço do cano do revólver contra a boca aumenta o desespero de Aldo. A mira da arma lhe fere o céu da boca, comprimindo os dentes e ferindo-lhe o lábio. O suor lhe escorre pelo rosto, pelo pescoço e chega a pingar no seu colo. Aldo fecha com força os olhos, aperta mais a arma na própria boca quase machucando a garganta e começa a pressionar lentamente o gatilho.
A Magnun, com o pente cheio de balas, treme em suas mãos também suadas. Aldo tira com um movimento brusco a arma da boca e se atira no chão aos prantos. O choro forte faz tremer todo o seu corpo. Aldo ainda com a arma na mão e aos berros dá socos na parede de madeira, pontapés na cadeira. Pega a arma com as duas mãos e a coloca sob o queixo apertando com tanta força que se obriga a mover a cabeça para cima. Novamente a mira chega a feri-lo. Mais uma vez tenta apertar o gatilho, enquanto o suor escorre pela têmpora, pelo pescoço, dando-lhe uma sensação de frio visguento, mas seus dedos não obedecem a seu cérebro. Volta a se atirar aos murros contra a parede de madeira sem soltar a arma. Retira o pente, confere se está carregado e recoloca-o na arma. Coloca a arma contra a têmpora, apertando-a até que sai um filete de sangue. Retira a arma, recoloca-a na cabeça, tenta puxar o gatilho e mais uma vez não é capaz.
Atira a arma no chão de terra batida, atira-se contra a parede batendo com força a cabeça nas tábuas, olha pela janela do barraco de madeira, o morro lá embaixo, o movimento de pessoas como formigas que sobem e descem sem saber de sua cruz.
Olha a arma no chão, toma-a nas mãos, coloca a cabeça sobre a mesa e aperta a arma novamente na cabeça pressionando com força. A têmpora começa a doer, fisgando e pulsando. Aldo se atira sentado no chão, retira o pente de balas da arma atirando arma para um lado e pente para outro, se recosta na parede de tábuas do barraco e chora com fortes soluços.
- Não adianta Aninha. Eu não sou capaz nem mesmo de me matar. Sou um merda, um zero à esquerda - grita sozinho no barraco.
Atira-se na cama deixando arma e munição onde caíra. Aos prantos acaba por dormir.
Acorda com a noite alta. Os sons no morro mudaram. Há ruídos de todo tipo, desde sons de casais se amando, a gritos na noite, tiros, conversa aos gritos, discussões de todo tipo. Aldo sabe que tudo corre pelo morro. Todo tipo de atividade, legal e principalmente ilegal. Levanta-se e vai em direção ao canto do barracão onde fica o fogão. Como quase sempre, não há nada para comer. Desde que a mulher o abandonara, parece que Aldo nunca mais se alimentara. Procura a garrafa de café, serve-se de uma xícara. O café está frio, mas ele parece não se dar conta. Bebe o café mecanicamente. Deixa a xícara sobre o fogão. Procura pelo chão às apalpadelas. Recolhe a arma e o pente de balas. Recoloca o pente na arma. Puxa o cão da arma fazendo com que ela fique preparada, com uma bala na agulha. Trava a arma e a coloca nas costas, dentro da calça. Veste uma camiseta tipo regatas, uma jaqueta jeans, calça as botas e sai pela noite.
Desce pelos becos do morro, às vezes esbarrando nas pessoas, às vezes passando por elas sem nem mesmo vê-las. Alguém o cumprimenta com a voz engrolada de bêbado, ele responde sem nem mesmo se dar conta de quem era.
Chega à rua. Olha para um lado e para outro sem se decidir que lado tomar. Suas pernas decidem por ele e tomam a direção da delegacia do bairro, seu local de trabalho.

Aldo nascera Clodoaldo. Fã do Santos de Pelé e do meio campo Clodoaldo, seu pai quis homenagear o craque dando ao filho seu nome. Clodoaldo logo se tornaria Aldo, como era tratado pela mãe. Com o tempo, ele mesmo se apresentava como Aldo, e às vezes até se esquecia de seu nome correto.
Clodoaldo cresceu brincando de bandido e polícia, bicicleta, jogando futebol, onde era o craque da seleção, pique esconde, finca, bolinha de gude. Dia era polícia, dia era bandido. Dependia de quem participava da brincadeira.
Com a idade, Aldo deixou a brincadeira de bandido para se tornar um policial. Construiu sua vida em cima de sua decisão. Estudou, foi à escola e aprendeu. Preparou-se e prestou exames. Com vinte e dois anos, Clodoaldo da Penha Matos, entrava na Academia de Polícia, para sair formado daí a dois anos, como Cabo.
Designado para uma delegacia de periferia, logo é o policial mais amado da Seccional. Conheceu Ana Marise. Achou o nome meio esquisito, mas o coração não entende dessas coisas, e ele se apaixonou logo de cara.
Aninha “se fazia de difícil”, segundo palavras do próprio Clodoaldo. Aldo teve que dar duro pra conquistá-la. Com menos de dois anos de namoro, já estavam se casando.
O começo da vida de casado, embora cheia de dificuldades financeiras, era só-love. A música de Claudinho e Bochecha embalava suas vidas. Foram morar perto da delegacia, num barracão de fundos, quarto, sala, cozinha, banheiro, para economizarem. Ana levava almoço para ele. Ele participava ativamente das tarefas domésticas.

Aldo escolhera a carreira de policial por convicção. Amava o que fazia. Gostava de ser útil à sociedade. Sentia-se importante. Vestia com orgulho sua farda, sem prepotência. Acreditava cegamente no seu trabalho, na força da instituição, na justiça.
Com algum tempo que estava na delegacia, foi designado para trabalhar na viatura, com mais 2 soldados e um Sargento. Aldo logo se destaca. É o policial mais atencioso nas diligências, mais educado. É o homem em que vítimas e meliantes confiam.
Mas com pouco tempo Aldo percebe que os os colegas são corruptos e usam seus uniformes para cobrar propina e taxas de proteção dos comerciantes (roupas, objetos, presentes). Eles toma drogas de traficantes e os deixam livres. Numa oportunidade Aldo interpela o grupo, ameaçando denuncia-los.
- Aí, mano! Ou você está conosco ou contra nós. Como é que vai ser?
- De que vocês estão falando? Eu não sou corrupto. Eu sou um policial correto. Não vou entrar nessa não.
- Não? Não é corrupto não, é? E quem aqui é corrupto? O Tenente Vieira? O Mordaz? Ou eu? Só porque a gente toma umas droguinhas quase sem valor desses trafricantezinhos aí a gente é bandido também? E você? É bunda de santo, é? Acha que é melhor que nós?
- Não sou bunda de santo, nem melhor que ninguém. Só não quero entrar nessa. Se a gente entra nessa de pegar uma vez, pra não correr riscos, acaba repetindo no dia seguinte, no outro, no outro. No fim já não tem mais jeito, quando a gente vai ver já está na lama, tudo ferrado. Pô, cara. Vocês estão cobrando proteção! Isso é bandidagem!
- Bandidagem? Bandidagem? Bandidagem é a gente trocar tiros com esses caras, eles sempre com armas muito melhores que as nossas, a gente ganhando a mixaria que a gente ganha, nem pode mandar nossos filhos pruma escola boa, a gente comendo o pão que o diabo amassou, pra esses caras ficarem sempre numa boa e a gente só na merda.
- Pode ser, mas nada disso justifica o que vocês estão fazendo.
O sargento, durante toda a discussão estivera encostado na viatura, comendo um palito de dentes. Mastigava-o, e o repassava de um canto a outro da boca. Levanta-se num movimento só, pega Aldo pela garganta subjugando-o contra o muro, o rosto colado ao dele, perfurando o rosto de Aldo com o palito preso entre os dentes.
- Seu maricas de merda! Por que você acha que não está envolvido com nossa ação? Você já testemunhou o que nós fazemos e não entregou ninguém. Acha que se falar agora não vai se ver envolvido? Alguém vai acreditar que você não tirou proveito, e que depois se arrependeu e deu pra traz? É como o Santos falou, brother, ou você tá com a gente ou contra a gente. É bom se decidir. Aqui não tem meio termo não. É dentro ou fora!
Solta Aldo. Arruma sua farda. Passa a mão no colarinho de Aldo, desamassando-o. Dá as costas e entra na viatura.
- Vamos embora. A gente tem muito o que rodar hoje.
Os outros dois entram no carro. Santos joga o quepe de Aldo, que o pega no ar. Mordaz olha para ele e lhe aponta o dedo e dá uma piscadela antes de tomar o volante.
- Deixa. O Aldo vai dirigir - diz o Tenente Vieira.
Mordaz sai, joga as chaves para Aldo e senta-se no banco de trás. Aldo entra, liga a viatura e a põe em movimento.

Mesmo contra a vontade, logo Aldo participa da partilha dos saques. A princípio joga toda a droga num bueiro a caminho de casa. Não pretende levar para seu lar resultado de ações criminosas, mas também não pode denunciar os colegas. Há entre todas as classes uma lei não escrita, que um não denuncia outro igual, e além do mais, Aldo fica com um certo receio de que algo possa lhe acontecer, se ele não entrar no jogo.
Passa a chegar em casa sempre tenso, nervoso. As brigas antes tão escassas começam a acontecer quase diariamente. Ana tenta descobrir o que acontece com o marido. Pede que ele se abra com ela. Aldo tem medo de incluir a esposa nos seus erros. Costuma pensar: o que ela não sabe não pode feri-la. Assim, pensando proteger a esposa, não lhe conta nada.

Ana engravida. As despesas, mesmo antes do bebê nascer, já aumentam. O salário de Aldo não é suficiente. A armadilha já está preparada. Aldo começa a vender as drogas que antes jogava no bueiro. Um embrulhinho aqui, outro ali, começa a levar para casa, “para o bebê”, roupinhas, fraldas, brinquedos recebidos em pagamento de extorsão. Em pouco tempo, como ele mesmo previra, não mais tem o controle do que está fazendo. Já está num mar de lamas.
As discussões aumentam. Embora as coisas estejam financeiramente mais fáceis, Aldo e Aninha não se entendem. Ele está sempre tenso, infeliz com o trabalho que amava. Ela não consegue saber o que está errado entre eles, mas alguma coisa que ela não distingue destrói suas vidas.
A gravidez de Ana, ao mesmo tempo que trás alegria e renova as energias do casal, vem acompanhado de mais problemas. Aldo sabe que as despesas vão aumentar, e se envolve cada vez mais com o jogo de corrupção e morte.
A vida no pequeno barracão já não mais servia para um policial que iria ser pai. Aldo resolve que eles têm que se mudar. Ana tenta argumentar que podem continuar onde estão, pois mudança significa mais despesas. Aldo não se deixa convencer. Afirma que pode ganhar mais, pra dar a ela e ao filho que vai nascer uma vida melhor. Ana pergunta como ele pode ganhar mais. Aldo não se explica.

Uma tarde, quando vai ao açougue, Ana percebe que quando ela chega as pessoas se silenciam, param a conversa até que ela saia. Na padaria se repete com algumas pessoas. No supermercado parece-lhe que algumas pessoas a olham de maneira estranha. Comenta com o marido, que lhe diz ser impressão sua. Até que uma manhã, uma velha a interpela na rua.
- A senhora é mulher do Cabo Clodoaldo, não é? Este filho aí é dele?
- Sou. É claro que é dele, que pergunta!
- Vai crescer bandido que nem o pai.
- Bandido? Meu marido é um policial, minha senhora! Defende as pessoas. É um homem de bem.
- Então não estamos falando do mesmo homem.
A mulher começa a se afastar. Ana corre atrás dela e a segura pelo braço.
- De que a senhora está falando? O que meu marido tem feito?
- Se você não sabe não sou eu que vou lhe contar. Tenho amor à minha vida e de meus filhos.
A velha continua sua caminhada e deixa Ana falando sozinha.
Ana começa a entender algumas coisas. O silêncio das pessoas quando ela se aproxima, os olhares de lado quando ela passa, o dinheiro inesperado que ele sempre trás para casa, dizendo que é de “bico”, que justifica os atrasos em chegar em casa. Pensa em comentar com o marido, mas logo muda de ideia, pois tem certeza que ele negará tudo. Precisa se certificar. Mas como? Perguntar às pessoas? Se ele realmente estiver praticando subornos, extorquindo comerciantes ou qualquer outro crime, ninguém vai ter coragem de delatá-lo. Ela sabe disso, ouve estas histórias todo dia na tevê. Ela mesma já ouvira comentários dos colegas do marido. Ninguém tinha coragem de delatar policiais corruptos.
Ana fica arredia. Evita o marido, que insiste em saber o que está acontecendo. Ela diz que é porque a barriga está crescendo, ficando mais pesada, o incômodo aumentando. As brigas diminuem, mas o diálogo entre eles é mínimo. Ana está sempre tensa, com os nervos à flor da pele. Morre de medo de dar ao marido qualquer dica que o faça perceber que está a par do que ocorre, ao mesmo tempo em que não tem certeza, e muito menos queira acreditar que o marido tenha se corrompido.
Ana decide que precisa ter certeza do que está acontecendo. Sua manicura é o chamado “jornal boca a boca”, dá notícias de tudo e de todos. Resolve marcar um horário. Telefona. Zuleika. Ela atende, e diz que não tem horário. Ana insiste. A manicura continua dizendo que não tem horário. Ana tem uma ideia: diz à manicura que se ela não conseguir um tempo pra ela, vai avisar ao marido. A ameaça dá certo. O atendimento é marcado para o mesmo dia.
Ana chega ao salão de Zuleika. Ela está sozinha. Melhor assim, pensa. Ana senta-se em frente à manicura, que a cumprimenta de má vontade, enquanto prepara as ferramentas para o atendimento.
- Tem mais alguém aqui, Zuleika? Ou estamos sozinhas?
- Estamos sozinhas - responde a outra com ar de poucos amigos.
- Ótimo. É melhor assim. O que eu quero falar com você é melhor que seja sem testemunhas.
- Eu não quero nenhum rolo pro meu lado. Não venha me meter em confusão.
- Eu não quero meter ninguém em confusão. Muito pelo contrário. Estou tentando sair de uma. Eu queria te pedir um favor. Não sabia a quem pedir isso, e me lembrei de você. Sei que você está por dentro de tudo que ocorre pelo bairro, e eu preciso saber de umas coisas.
- Olha aí. Pode parar. Eu não sou alcaguete nem informante, não, ok? Não pensa que você vem com essa carinha chorona, com essa barriga imensa e eu vou dar mole, não. Manda seu marido ir bancar o esperto com outra.
- Meu marido não tem nada a ver com essa conversa. Aliás, tem sim. Eu quero informações sobre ele.
- Sobre ele, quem? O seu marido? Você pirou de vez. Por que você vem querer meter logo a mim nesta confusão. Já te falei que não quero nenhum rolo pra mim.
- Eu também já falei que não é rolo. Eu quero é saber o que meu marido tem aprontado. Você e eu não temos intimidades, por isso achei que você podia me dar informações sem se comprometer, sem me esconder o que sabe. Não precisa me fazer a unha, eu só vim tomar informações.
- Você vai ter que pagar o horário assim mesmo.
- Não tem problema. O que você sabe?
Zuleika guarda o material que preparara para atender Ana. Lava as mãos na pia e as seca com uma toalha de papel, enquanto Ana a observa ansiosa.
- Você não sabe mesmo o que ele faz?
- Não. As pessoas andam me olhando meio de lado. Param de falar quando eu chego. Foi aí que eu comecei a desconfiar.
Zuleika senta-se no banquinho que usa para atender as clientes.
- Olha, o que vou te dizer... Nem sei se devia te dizer. Acho que vou entrar numa fria.
Ana toma as mãos da outra entre as suas.
- Por favor. Sei que não sou sua amiga. Mas me conte mesmo assim. É muito importante eu saber o que meu marido anda aprontando.
- Tá bom. Mas se ele perguntar como você ficou sabendo, nunca diga meu nome, ta legal?
- Certo. Prometo.
- Olha lá, se ele descobre que eu entreguei ele pra você, eu estou encrencada de vez, entendeu?
- Prometo.
- Bom. Droga, eu devia ficar de bico fechado! O seu marido, junto com os colegas de guarnição dele, vendem drogas que tomam dos traficantes do bairro, cobram proteção dos comerciantes, entram nas lojas, supermercados, padarias, açougues, pegam o que querem e saem sem pagar como se fosse a coisa mais normal do mundo. E se alguém tenta falar alguma coisa, eles prendem sem motivo, espancam. Dizem até que eles mataram um traficante que tentou entregá-los. Mas disso ninguém sabe ao certo. Tem gente que fala que eles deixam esta história correr pra todo mundo ficar ainda mais com mais medo deles. Olha lá, hem, não vai deixar ele saber que foi eu quem te contei não, hem?
Ana não quer acreditar no que ouve, mesmo já sabendo de antemão que era verdade. Levanta-se, agradece a Zuleika e sai meio desnorteada. Lembra-se que não pagara o horário, como a manicura determinara. Volta, paga à moça, agradece mais uma vez e sai em direção à rua.
O caminho de volta é penoso. Não quer acreditar que a verdade é tão dolorosa. Parece ser um sonho, um pesadelo que vai acabar antes dela chegar em casa. A barriga pesa mais que o normal. Decide que quando o marido chegar, vai abraça-lo, dizer o quanto o ama, pedir que ele volte a ser o homem bom, carinhoso, idealista com que ela se casou.
Quando Clodoaldo chega ela tenta ser alegre, mas ele está nervoso, parecendo estar embriagado. Seu desespero aumenta. Ana tenta falar com o marido.
- Aldo, o que você tem, meu amor? Você parece que está bêbado! Por onde você tem andado, chegando em casa sempre tarde.
- O que que foi, vai começar a me controlar agora, é? - Aldo joga-se no sofá, tira as botas e chuta-as para um canto da sala - O que que tem aí pra se comer? Os olhos parecem avermelhados e ele parece trêmulo.
Pela primeira vez desde que se conheceram Ana sente medo do marido. Providencia um prato com comida, serve o marido que continua no sofá, senta-se ao lado dele enquanto ele come e assiste à tv. O marido come rápida e agitadamente. Ana o observa. Coloca a mão sobre a coxa do marido. Ele se volta para ela.
- O que? Tá me olhando por que?
Ana começa a soluçar. Tenta segurar o choro, mas ele vem sem controle. Ela se levanta, vai até o quarto e se joga na cama. Aldo larga o prato no sofá, vai até o banheiro, e só então se dirige ao quarto.
- E essa agora. O que que foi que você ta chorando? Aconteceu alguma coisa? O bebê está ok? - pergunta da porta, sem chegar até sua esposa.
Ana se levanta devagar, limpa o rosto, controla o choro. Vai até a sala, pega no sofá o prato deixado pelo marido, leva-o até a pia, lava-o, coloca no escorredor de talheres. O marido acompanha seus movimentos em silêncio. Ana desliga a tv, senta-se no sofá. Aldo vai à geladeira, pega uma lata de cerveja e abre. Dá um gole.
- Você não bebia cerveja - diz Ana.
- Você hoje tirou o dia pra me irritar? Eu não bebia, mas agora bebo. Qual o problema?
- Além de beber você agora ta cheirando também? Ta fazendo uso da droga que rouba dos traficantes ou só negocia ela? Você já matou pra ficar com alguma droga?
- Ei, que papo é esse? De que você ta falando? Droga, traficante? Quem andou te falando essas coisas?
- Ninguém me falou. Eu só ouvi umas coisas por aí. Aí eu comecei a perceber: as pessoas se calam quando eu chego, cochicham, me olham de lado.
- Quem? Quem faz isso? Me fala e eu vou lá dar um corretivo no cara!
- É assim, não é, Senhor Aldo! O policial que queria ajudar as pessoas, ser um herói para as crianças do bairro, fazer todo mundo voltar a acreditar na polícia, agora é um deles. É um maldito filho da puta corrupto, que mete medo em todo mundo, que toma, rouba, mata, trafica!
Aldo pega Ana violentamente pelo braço.
- Olha aqui, que conversa é essa? Onde você tá arranjando estas histórias? Fala baixo, se alguém te ouve pode acreditar, e aí eu tô arranjado. - aponta o indicador para a esposa, quase colocando o dedo no seu rosto - Não se meta em assunto que não é seu!
- Assunto que não é meu? Você é meu marido, ou se esqueceu? O que você faz na rua me diz respeito, e as pessoas me tratam como você as trata.
- Isso é balela. Se alguém te maltratar é só você me falar que eu dou um jeito.
- Eu não quero que você dê um jeito. Eu quero que você SE DÊ UM JEITO! Eu quero meu marido de volta. O homem honesto, alegre, feliz que você era.
- E você acha que é fácil manter o que a gente tem? Por acaso acha que com o meu salário a gente poderia viver como vive?
- Eu não pedi tudo o que a gente tem. Só pedi pra gente estar junto. Junto de verdade, um confiando no outro.
- Isso tudo é conversa fiada. Você agora vai cuspir no prato que come?
- Não estou cuspindo no prato que como. Só quero comer num prato limpo.
- E quem te falou que eu não sou honesto?
- Você! Eu estava desconfiada, com o jeito das pessoas me tratarem. Aí eu vi como você chegou. Até parece que andou cheirando - Ana pega no braço do marido, arregaça num movimento a manga da camisa e confere o braço - Ou você está injetando?
Aldo puxa violentamente o braço. Vira-se e dá as costas à esposa.
- Não estou cheirando nem injetando. Só estou um pouco bêbado. A gente tava comemorando um pouco e eu me excedi. Não sou nenhum drogado.
- Não é o que está parecendo.
A conversa termina cada um para um lado, sem se entenderem.

Passados alguns dias, num fim de semana, os colegas de viatura inesperadamente aparecem para um churrasco. Ana e Aldo são pegos de surpresa. Os colegas chegam, dizendo que vieram comemorar a vinda do filho de Aldo. Ana se sente deslocada no meio dos rapazes, mas eles a tratam com animação e respeito, e o ambiente a princípio meio pesado vai aos poucos se amenizando.
Quando Ana vai lavar as louças, o Sargento Vieira se oferece para ajudá-la. Passados alguns minutos, ele sai e convida a turma para irem embora. Todos se despedem alegremente de Aldo e de Ana. Aldo os acompanha até o portão, enquanto Ana fica acompanhando-os da janela. Quando Aldo entre, ela está sentada no sofá, lívida e trêmula.
- O que foi? Está sentindo alguma coisa? É o bebê?
- Não. Não é o bebê. Estou bem, só um ligeiro mal estar. Deixa eu descansar aqui que vai passar já.
Aldo vai até a cozinha, pega um copo com água e traz para a esposa.
- Tome. Beba um pouco de água. Vai te fazer bem - Ana beberica da água, se levanta e se dirige ao quarto.
- Guarde as coisas na cozinha pra mim. Vou me deitar um pouco.
- Tem certeza? Não é melhor procurar um médico?
- Não. Já vou melhorar.
Aldo vai até a cozinha enquanto Ana vai para o quarto e se deita na cama. Cobre o rosto com o travesseiro e chora. O marido nada vê. Chega-se à porta do quarto, olha rapidamente a esposa na cama e liga a tevê para assistir um programa de domingo.
No dia seguinte quando chega do trabalho, Aldo é surpreendido por Ana que o espera de malas prontas.
- E agora? Quê que foi? Onde você vai?
- Vou embora Aldo. Vou pra casa de meus pais lá em Pirapora. Eu não aguento mais essa situação. Estou morrendo de medo. Se você quer essa vida fique com ela. Eu não!
- De que você tá falando? Medo? De que?
- O seu sargento, ontem, enquanto me ajudava a lavar os pratos, veio me falar que “eu estou interferindo no seu trabalho, e que isto pode ser muito perigoso, pode atrapalhar você, que alguma coisa pode acontecer com você durante uma batida”, e coisas do tipo. É uma ameaça bem clara, você não acha? Áh, ele ainda me disse que pode acontecer alguma coisa comigo, ou com o bebê. Se você quer esta vida pra você é problema seu. Eu não vou ficar aqui correndo risco de vida porque você se meteu com colegas corruptos. E por favor, não me procure, a menos que queira sair dessa e a gente possa voltar a viver uma vida digna. Não vou viver com medo de tudo e de todos o tempo todo. Fique com sua escolha e eu com a minha. Se você resolver sair dessa, sabe onde estou.
Ana dá um abraço no marido, beija-lhe o rosto.
- Eu te amo. Não se esqueça disso. E estou esperando você. Por favor, saia dessa pra gente voltar a ser uma família.
Solta-se do marido, que fica parado, sem reação enquanto ela entra no táxi e vai embora.

A vida de Aldo se torna um inferno. As discussões e ameaças dos colegas são uma constante. Meses se passam, até que ele, desesperado, tenta inutilmente se matar. Entra na delegacia e vai direto ao comandante do batalhão. Quarenta minutos depois sai de lá. Vai até o barraco onde estivera, no meio do morro, e que é usado pelo grupo para suas partilhas. Limpa toda evidência de sua presença que consegue encontrar. Desce o morro, toma a direção do metro.

Seis meses depois, a campainha da casa dos pais de Ana toca. Sozinha em casa, tomando conta do filho que começa a caminhar, enquanto os pais trabalham numa pequena loja de ferramentas, Ana atende à porta.
Aldo está parado ao portão. Com uma roupa alegre, colorida, barba feita, cabelo cortado e bem penteado. Ana o observa da porta da casa, sem coragem de ir atendê-lo. Ao mesmo tempo em que sente uma imensa alegria em ver o marido, aparentemente bem, tem medo de que ele ainda esteja envolvido com os colegas corruptos. Muitas noites sonhara com aquele momento, e agora que o marido estava ali, frente a ela, não sabia o que esperar.
- Oi. Tudo bem Ana? E o nosso filho? É homem ou mulher? Já ta com que, um ano e dois meses?
- É, quase três. É um menino. Já tá começando a andar. Tá dando um trabalhão, responde Ana meio sem graça.
- A gente pode conversar? Eu só vou entrar se você quiser. Mas só pra te adiantar: você falou pra eu te procurar só se eu tivesse deixado a vida que eu tava levando, eu tô aqui. Estou aqui porque te amo, e quero viver com você de novo. Quero que a gente seja uma família de novo.
- Será que eu posso confiar em você?
- Deixa eu entrar. A gente se fala. Se você não me quiser, eu vou embora, mas não me mande embora sem falar comigo.
Ana dá passagem na porta.
- Ok. Pode entrar.
Aldo abre o pequeno portão, passa por ele e o fecha novamente. Sobe os degraus da pequena varanda da casa, limpa os pés no tapete de entrada, pede licença e entra na casa.
- Como meu filho se chama?
- Clodoaldo, como o pai.
- Você colocou meu nome no meu filho?- pergunta Aldo entre emocionado e sorridente - Mesmo com tudo que eu te fiz passar, você deu meu nome pro nosso filho?
- Eu sempre tive certeza, quer dizer, esperanças que você fosse voltar para nós. Aí me pareceu que a melhor maneira de manter você vivo na nossa vida seria dar a ele o seu nome.
- Posso pegar ele? - Pergunta Aldo, já se agachando para tomar o filho nos braços.
- Cuidado, vai devagar que ele tá naquela fase de estranhar as pessoas. Aí, tá vendo? Já começou a chorar. Quer me dar ele?
Aldo permanece com a criança nos braços, enquanto lhe faz carinho e conversa com ele, tentando acalmá-lo e fazê-lo parar de chorar. “È o papai, filhão. O papai chegou e vai te curtir de montão. A gente vai ser uma família de novo”. Dirige-se a Ana. “Você já falou de mim pra ele”?
- Já. Eu sempre digo pra ele que você está viajando, e que vai chegar logo, pra gente ficar junto de novo.
Aldo parece se emocionar. Abraça o filho com força e carinho ao mesmo tempo. Dá-lhe um beijo no rosto. “Papai te ama, filhão. Sempre te amou, mesmo sem te conhecer”.
- Eu estou preparando o almoço. Você quer ir até a cozinha? Enquanto eu continuo, você fala o que veio fazer aqui.
- Eu já disse o que vim fazer aqui. Eu vim pra gente ficar junto de novo. Pra gente formar a família que eu deixei escapar. Eu te amo Ana!
- Tá, você me ama, eu sei. Mas e daí? E os seus companheiros de farda? Como é que ficou? Eles vão deixar a gente em paz? Vão deixar a gente viver uma vida normal?
- Vão. Eu já conversei com eles e ficou tudo arranjado.
- Arranjado como? Eu te falei que não vou viver com medo, que não quero viver esperando o dia que um desses caras vai aparecer na minha frente, e me matar, matar alguém de minha família, meu filho, meu pai, sei lá!
- Isso não vai acontecer.
- Como você pode ter certeza? Que tipo de garantias você pode ter? Você sabe muito bem que nesses caras não dá pra se confiar. A vida deles depende do seu silêncio, e eles nunca vão poder confiar que você vai se manter calado, e aí como fica?
- Eu já dei um jeito nisso também. Já arranjei tudo. Eles não vão ameaçar você, nem a mim, nem a ninguém da família, amigos, vizinhos, nada.
- Que garantias você pode ter disso?
- Quando você me deixou, minha vida virou um inferno. Eu quase me tornei um alcoólatra. Graças a Deus, não me meti com drogas, nem antes nem depois de você vir embora.
Aldo tira do bolso uma bala de revolver e a coloca sobre a mesa da cozinha.
- Eu até tentei me matar, dar um tiro na cabeça e acabar com o seu e o meu problema, mas sou tão covarde que nem isso eu consegui. Carrego esta bala sempre comigo, pra me lembrar de quanto fui fundo. Aí um dia eu desesperei. Procurei o meu comandante, contei tudo que eu fazia, mas não entreguei ninguém. Falei que eu agia sempre sozinho. Ele não acreditou em mim, insistiu e pressionou pra que eu confessasse que os colegas estavam metidos, mas eu me mantive firme. Durante seis meses cumpri pena me tratando numa clínica de dependentes de álcool.
- Isso não garante que eles vão deixar a gente em paz.
- Não, não garante. Mas eu gravei um depoimento, contando tudo que sei, dando dicas, com evidências, que pode levar todos eles pra cadeia. Você se lembra daquele filme com o Tom Cruise, A Firma? Pois é. Fiz que nem ele no filme. Eu fiz seis cópias de meu depoimento. Entreguei cinco delas pra uns advogados, uma pra cada, como se fosse meu testamento. Se acontecer alguma coisa comigo, se eu morrer de forma estranha, se eu levar um tiro no meio de uma diligência de forma inexplicável, ou com você, ou com nosso filho, ou com alguém da família, eles abrem o testamento, e lá dentro, lacrado, tem instruções pra mandar as cópias pros jornais, televisão, pra corregedoria, pra Secretaria de Segurança e pra Procuradoria. E pra eles não terem dúvidas que eu fiz isso mesmo, eu dei uma cópia pra eles, assim eles nunca vão achar que eu estou blefando. O acordo foi um só: eles esquecem que eu existo, e eu esqueço que eles existem. Ninguém nunca mais fala um no outro, nem se visita, nem nada. Não sobrou alternativa pra eles. Tanto pra eles como pra mim foi a melhor saída.
Ana continua a tarefa de preparar o almoço, vez ou outra para e dá atenção ao marido. Enquanto fala, Aldo brinca com o filho.
- E você acha que vai dar pra confiar neles? Eles não vão achar um jeito de ferir um de nós e saírem numa boa, não?
- Eu não vejo como. Qualquer coisa estranha que acontecer com qualquer um de nós, eu mando os advogados soltarem os depoimentos. Se eu morrer de forma estranha, eles fazem isso por conta própria. Eu acho que a gente está seguro.
Ana para de mexer a panela, limpa as mãos no pano de prato que mantinha no ombro, senta-se em frente ao marido.
- Tudo que eu quero na vida é acreditar nisso. Que a gente pode ter uma vida normal de novo. Que você vai voltar a ser um policial respeitável, e que nosso filho vai poder crescer respeitando o pai como gente de bem.
- É tudo que eu quero também, mas não adianta a gente se enganar. As coisas não vão ser fáceis. Eu pedi transferência aqui pra Pirapora, e já saiu. Mas eu só venho pra cá, se você concordar em voltar pra mim, pra gente voltar a ser uma família. E vai ser complicado! Eu vou carregar por muito tempo a marca de policial corrupto, alcoólatra. Muita gente não vai confiar em mim, achar que não sou de confiança. Outros vão achar que vão poder me incluir nas jogadas deles. Uns e outros vão me testar, uns pra ver se sou de confiança, outros pra ver se eu me corrompo de novo. Vou ter que batalhar muito até voltarem a ter confiança em mim. Vai ser barra no trabalho e até aqui em casa podemos ter problemas. Será que seus pais vão acreditar em mim? Será que você vai acreditar em mim? Você vai ter que confiar, acreditar em mim. Se você quiser ficar comigo, mas preferir que eu deixo a polícia, até isso estou disposto a fazer.
Ana pega o filho no colo, faz nele um carinho, limpa a boca do menino com o pano de prato e brinca com miolo de pão solto sobre a mesa, fazendo bolinhas.
- Eu não quero que você deixe a polícia. Sempre foi o seu sonho, o que você quis ser a vida toda. Se você é capaz de suportar estas coisas todas que você falou, no trabalho, em casa... Bom, meus pais eu dou conta deles. Se eles tiverem alguma resistência eu convenço eles.
Aldo pega as mãos de Ana. Aperta-as com força, sorridente.
- Isto é um sim? Você quer dizer que você aceita ficar comigo?
- Em princípio é um sim, mas a gente vai ter que conversar, acertar umas coisas. Você já tem onde ficar? Já se arrumou em algum lugar?
- Não. Eu vim direto da rodoviária. Deixei minhas coisas aí fora. Se você não quisesse falar comigo eu já ia pegar o ônibus de volta hoje mesmo.
- E nem ia tentar me convencer? Ou já contava que ia ser mole como foi? - diz Ana meio em tom de deboche.
Aldo dá um beijo nas mãos de Ana.
- Na verdade não tinha pensado nisso, em se você ia aceitar fácil ou não. Só sei que nunca tive tanto medo, nem mesmo quando tinha que entrar em confronto armado com traficantes no Morro do Pindura Saia. Acho que eu tinha mais medo de ficar sem você que de morrer.
Ana abraça o marido, com o filho entre eles. Eles trocam um beijo, primeiro desconfiados, mas que vai ficando ardente. Ana coloca o filho no chão, e vai desligar as panelas. Aldo toma o filho pela mão e se dirige à porta da cozinha. A casa possui um grande terreiro, onde ciscam galinhas. Aldo pega o filho e sai pelo terreiro a brincar com o menino. Ana apoia-se no umbral da porta. Um suave sorriso nasce em seus lábios enquanto observa o marido brincar com o filho. Uma calma relaxante há muito guardada no peito, espalha-se pelo seu corpo.
De repente Ana acredita que a felicidade é possível.



























O
CUNHADO

Não sabiam, mas o amavam
com a mesmo intensidade que o odiavam”















Havia só uma unanimidade sobre ele. Era um chato. Aliás: “o chato”!
Agradá-lo era impossível. Todos tentaram, ninguém jamais conseguiu. Por mais que se fizesse, por mais que se tentasse, ele sempre tinha uma crítica, um comentário negativo.
Ele passou a ser chamado de Cunhado. Com o tempo, até mesmo seus familiares esqueceram-se de seu nome, era apenas O Cunhado. Sua esposa o chamava de amor, benzinho, querido. Suas filhas e filhos, papai. Seus netos, quando chegaram, aprenderam a chamá-lo de vovô. Assim, ele passou a ser Cunhado.
À primeira vista tido como pessimista, era quem colocava no lugar os prós e contras, quem pesava todas as possibilidades, quem trazia de volta à realidade os sonhadores de plantão.
Surpreendentemente, ao invés de trazer grandes transtornos familiares, sua chatice acabou por trazer certa comicidade ao relacionamento. Não que a família o aceitasse assim, mas porque chegaram à triste conclusão que nada poderia ser feito, e assim a vida foi rolando.
Temos, entretanto, que, como ele mesmo diria, colocar os pingos nos is. Houve controvérsias, até mesmo traumas. Com o tempo, até mesmo os futuros pretendentes a fazerem parte da família, namorados e namoradas dos filhos e filhas, ou mesmo sobrinhos, tinham que passar pelo seu crivo. Se não era aceito por ele, a guerra estava armada. Se o/a pretendente tivesse jogo de cintura e soubesse entrar na onda, tudo se dava bem, caso contrário estava numa roubada.

Houve o caso da Leninha. Triste caso. Deu uma verdadeira confusão, quase briga de família, mas no fim, tudo se arranjou. Afinal, apesar de chato, o Cunhado era muito galante, e sabia se arranjar com certa maestria.
Mas vamos ao caso. Leninha, cunhada do Cunhado, era famosa por sua bacalhoada. Sua fama corria de boca em boca. Bom, deu-se que o aniversário do Cunhado caiu na Semana Santa. Sempre muito agradável, Leninha oferece para fazer uma surpresa: dará de presente ao Cunhado sua famosa bacalhoada. Todos combinam fazer uma surpresa, cada um levando um prato, e encontrando-se na casa daquele. Na hora combinada, a esposa já com tudo armado, chegam os familiares, colocam os pratos para o almoço. A mesa fica linda, toda decorada com pratos característicos da ocasião. Cantam parabéns para o cunhado! Ele chega quase a se emocionar! Tomam umas e outras, falam besteiras, conversa pra se jogar fora, política, futebol, religião, a filha da vizinha que virou sapata, o namorado novo da Tuca, coisas e tal.
Hora do almoço. Sentam-se à mesa. Leninha, muito solícita, oferece ao Cunhado sua bacalhoada. Serve-o de uma boa fatia e lhe entrega o prato.
- Eu não como bacalhoada. Este troço é muito ruim, não tem gosto de nada.
Leninha não sabe onde enfiar a cara. Mesmo sem graça, tenta argumentar.
- Ah, é porque você nunca comeu da minha bacalhoada. Como aí, vai. Você vai adorar!
- Quero não. E duvido que você faça uma bacalhoada que fique gostosa. Este troço não tem jeito de ficar gostoso.
O prato parado no ar, na mão de Leninha parece pesar uma tonelada. Ela não sabe o que fazer, se fica com o prato, se o passa para outra pessoa. A esposa do Cunhado tenta ajudá-la.
- Experimenta um pouquinho, meu bem. A Leninha fez especialmente pro seu aniversário, vai. Experimenta!
A turma começa.
- Experimenta! Experimenta! Experimenta!
O Cunhado não se deixa vencer, aliás, venhamos e convenhamos, ele era de opinião, nunca fazia nada diferente só pra agradar.
- Gente, eu não gosto. Não vou comer só pra agradar quem quer que seja! Passa aí a muqueca e o pirão que eu vou é de peixe. Deixa o bacalhau para vocês. Podem comer minha parte.
Leninha, muito sensível, na opinião do Cunhado sensível até demais, não suporta a desfaçatez do outro. Solta o prato na mesa, levanta-se aos prantos e corre para o quarto. Seu marido vai atrás, não sem antes dar um olhada irada para o Cunhado (aliás, irmão) e fazer um comentário rasgado.
- Não dava pra você ser um pouco gentil, uma única vez na vida?
Leninha já está voltando, com bolsa e tudo mais nas mãos, dizendo que vai embora. A turma toda se levanta para tentar convencê-la a ficar. Fica, não fica, vozes alteradas daqui, vozes ainda mais alteradas dali, críticas severas ao Cunhado, sua esposa ao mesmo tempo que o critica acha que a concunhada está exagerando, até que ele se levanta, abraça a cunhada (eu já disse, ele tinha seu charme e sabia usa-lo se necessário), não chega a propriamente pedir desculpas, mas contorna a situação.
- Hei cunhada, faz isso não! Desculpe, vá! Puxa, eu não gosto de bacalhoada, obrigado pelo seu trabalho de fazer pra mim, mas vai, você bem que podia ter se informado, né? Todo mundo aqui sabe que eu não gosto. Até o merdinha do seu marido sabe que eu não como isso, ele não te falou nada não? Vem cá, senta aqui, vamos almoçar numa boa, todo mundo junto, outro dia eu como um daqueles pratos maravilhosos que você faz, aquela carne de panela sensacional, um charuto de repolho, qualquer coisa.
- Aí Leninha, você até conseguiu um elogio do Cunhado - diz alguém no fim da mesa.
- Qualé Simas, eu sou todo elogios!
- Você, fazer elogios, só se for pra ganhar um milhão! Tá difícil de alguém ver isso!
Leninha, ainda com um resto de choro senta-se à mesa. O Cunhado oferece-lhe um pouco de sua própria bacalhoada. Ela aceita, responde com um sorriso sem graça, e as conversas recomeçam. Logo logo o alvoroço é total, todos falando ao mesmo tempo e ninguém entendendo ninguém.
O Cunhado logo se transforma em lenda na família. Seus causos, e ele próprio, tornam-se presença necessária nas reuniões de família. Se sua presença muitas vezes podia ser um transtorno, sua ausência ao contrario era mais sentida. Quando ele não estava, a alegria parece que era menor, os assuntos ficavam mais difíceis, a conversa ficava muito séria, as discussões sem mediador, porque ele nunca levava nada a sério. Sua picardia, seu sarcasmo sempre fazia com que os ânimos se amainassem. Se alguém começava a exagerar, a falar mais alto, a se exaltar, ele entrava na conversa, queria saber qual era o assunto para tanta discussão e sempre saía com algum comentário, com alguma piadinha sem graça sobre o problema que tirava todos do sério. Falar com ele seriamente, todos diziam, era impossível, pois ninguém conseguia saber se ele falava sério ou se estava pilheriando.
Política? “Não sei por que se reclama tanto dos deputados e senadores. Vocês já imaginaram como é difícil pensar numa maneira de roubar tanto dinheiro, e ainda administrar pra que ninguém descubra, nem denuncie, ter que administrar secretárias, ex-mulheres, ex-maridos, caseiros, etc. não é mole não, mano!”
Religião? “Já dizia o nobre Fernando Cafunga, com quem trabalhei certo tempo: se o povo tivesse escolhido Cristo para ser libertado e tivesse crucificado Barrabás, a gente não seria cristão, seríamos barrabãos.”
Sobre a violência diária? “O que vocês querem? Quando Caim matou Abel, toda a descendência que adveio dele herdou o lado negro do homem, o lado bom morreu com Abel, que não deixou descendência, assim, todo ser humano é geneticamente mau”.
Assim, e por tudo isso, aquele natal ficou na história. Estavam todos reunidos. Pela primeira vez a família do Cunhado e a de sua esposa comemoravam juntas. O almoço era no sítio de uma irmã. A meninada corria, jogava bola, nadava na pequena piscina. Com muito esforço, reuniram-se todos à beira da imensa mesa. O Cunhado pega um pedaço de rabanada - ele tinha a estranha mania de comer doce antes da refeição, come, fecha os olhos, chupa os dedos e diz: “Divino! Cara que coisa gostosa! Quem é o responsável por isso?”.
Faz-se um silencio à mesa. Todos se entreolham surpresos. O Cunhado toma de novo pedaço, novamente come, chupa os dedos: “Divino! Há muito tempo não comia uma rabanada tão gostosa!” Só então ele se dá conta do silêncio que impera e dos olhares surpresos que lhe são dirigidos.
- O quê? Por que tá todo mundo me olhando? Olha aí, eu não fiz nada hem, qualé?
- Amor, você fez um elogio! Você não colocou nenhum defeito na rabanada da Sandrinha.
- Ué, e colocar defeito por quê? A rabanada da Sandrinha não tem defeito, parece o néctar dos Deuses - olha para a garota, noiva de um sobrinho, que pela primeira vez passa o natal com a família. “Até que enfim vai entrar alguém nessa família que sabe cozinhar, já era tempo!”
- Aí, não tem mesmo jeito - diz alguém - este cara não tem conserto. Tem que largar de lado.
O alvoroço recomeça, todos se servem, mães servem aos seus filhos pequenos que são colocados em outra mesa para que os adultos possam ficar mais à vontade. O assunto roda e acaba por voltar ao surpreendente e inesperado elogio do Cunhado.
- Ô Cunhado, quem te viu quem te vê, hem! Os cabelos vão ficando brancos e você já está dando mole, já está até soltando alguns elogios.
- É mesmo, Gilson, eu nunca esperei ouvir do Cunhado um “di-vi-no”! Acho que foi a maior surpresa da minha vida.
- Aí, aí, Teles, o cara tá ficando é mole mesmo.
- Vocês nunca vão deixar de ser os babacas de sempre, né não? Eu sou sincero, não fico aí puxando o saco de ninguém. Se tá bom eu digo, se tá ruim também não dou mole. E tem mais, esse negócio de ficar só elogiando acaba por estragar as pessoas. Elas acham que está tudo ok, que não precisa melhorar nada e paralisam no tempo.
- É, pode até ser. Mas nunca fazer um elogio, nada absolutamente nada estar bom também é demais, né meu bem?
- Eu não sou assim não, sou?
A resposta é uma ola geral.
-Nããããão!!! Não é não!!
- Que isso gente! Eu sou o cara mais legal daqui, sou não?
- Ô Cunhado! Legal? Você é o maior chato que a gente conhece.
- Peraí! Aí vocês estão me sacaneando! Só por que eu sou sincero, vocês me chamam de chato?
- Sincero? Você é sincero demais! Podia ser um pouquinho mais diplomático, não acha?
- Diplomático? E como vocês acham que eu cheguei aos trinta anos de casamento e convivência com vocês se não fosse diplomático?
- De casamento eu não sei, mas de convivência com você a gente é que teve que ser muito, mas muito mesmo, diplomático. Não fosse sua esposa minha irmã, eu já teria lhe dado uns contravapor há muito. Ô cara complicado, meu!
A conversa continua neste tom por algum tempo, mas aos poucos uma ou outra pessoa vai mudando de assunto, e grupinhos vão se formando aqui e ali. A festa dura até altas horas, e como sempre termina com uma agradável despedida, beijos, abraços de uma família relativamente feliz e sem problemas insolúveis.
O Cunhado não parava de surpreender. Num aniversário de casamento, simplesmente “raptou” a esposa. Entrou em casa quando não tinha mais ninguém, colocou-a “mais ou menos” à força no carro, e desapareceram, sem dar à família qualquer notícia ou explicação. Foi um alvoroço. Todos, filhos, irmãos, cunhados, sobrinhos, procurando por eles sem os encontrarem. Celular: desligado ou fora de área. Recados: de nenhuma espécie. Até dar queixa na polícia, e claro, “temos de esperar 24 horas” e coisa e tal e tal e coisa, hospitais, casa de amigos, etc. até que alguém se lembrou que era aniversário de casamento. Os ânimos amainaram um pouco, uma leve desconfiança que era aprontação do Cunhado, mas Da. Carmem aceitar, ah, já seria outra coisa, difícil de se acreditar!
Não deu outra! No domingo à noite, a família toda reunida, orações pelo casal, um ar de tragédia que até parecia velório, chegam os dois, com a maior cara de namorados, dizendo que foram passear por Diamantina, curtir uma seresta nas ladeiras da cidade.
No começo, a turma ficou brava, haviam passado um fim de semana do cão à procura dos dois, sem saber o que havia acontecido, pensando que haviam sido seqüestrados e mortos, mas aos poucos foram todos se acalmando, e uma nova festa começou. Todos queriam saber como tinha sido o fim de semana, os casos pitorescos do lugar e do Cunhado foram se sucedendo, e a noite acabou bem mais tarde que se esperava.
E foi assim, que todos aprenderam que do Cunhado tudo se podia esperar. Tudo, menos aquilo. Aos setenta anos, o Cunhado simplesmente resolveu que ia entrar para a política. Assim, do nada, de repente.
- Mas Cunhado, você sempre detestou política, sempre disse que é coisa de gente sem caráter, como é que vai entrar nessa?
- Sei lá, acho que fiquei sem caráter!
- Isso é mais uma gozação sua. Você não está falando sério.
O Cunhado apresenta sua carteirinha do partido. “Aqui! Já estou filiado, e já inscrevi minha candidatura”.
- Qual partido?
- Aqui, mano! Partido Comunista!
- Não! É gozação da grossa! O Cunhado? Comunista? Nem se Jesus Cristo fosse seu vice!
- Pois eu vou trabalhar em prol do povo...
- Aí, o cara já tem até discurso - interrompe alguém.
- Ô amor, você com setenta anos de idade, vai querer se meter com política a troco de que?
- Eu estou meio parado, só esperando a morte chegar. Isto não é de meu feitio. Preciso de ação, movimento, e na política vou ter tudo isso com fartura, e discussões, grandes discussões.
- Mas e ideologia, Cunhado? Você não disse sempre que pra se meter em política tem que se ter ideologia?
- E você conhece algum político que tenha ideologia? Isto é conversa pra boi dormir!
O papo se alonga, cada um com sua argumentação e contra argumentação, mas no fundo, lá no fundinho mesmo, ninguém duvida de que o Cunhado seja capaz de se meter na nova aventura, por isso, quando a turma fica sabendo que ele está praticando vôo de ultra-leve sem o consentimento da esposa, mesmo aos setenta e um anos de idade, ninguém mais se surpreende.

Surpresa, mas surpresa mesmo, todos tiveram naquele dia. O sol brilhava mais que de costume. Parece que havia uma alegria maior no ar. O cunhado acordou, aparentando uma alegria maior que a do sol, fez um comentário costumeiro sobre o defeito do café, sobre o pão que se desmanchava a um leve toque e saiu para sua caminhada matinal. Voltou, sentou-se na varanda para ler o jornal, e simplesmente morreu. Assim, do nada, “como se fosse um passarinho”, diriam depois seus amigos e parentes. Não caiu, não chamou por ninguém, não deu seu costumeiro show. Simplesmente morreu!
Quem achava que o Cunhado dera ao mundo sua última surpresa, se surpreenderam mais ainda. Foi um enterro concorridíssimo! Amigos, conhecidos, parentes, que eram muitos (família grande), colegas de trabalho, vizinhos. Não se sabe se vieram todos pelo apreço ao Cunhado, ou se para se garantirem de sua morte, mas vieram. Diria tia Matilde –Tia Matusalém, como diziam os sobrinhos pequenos, em referência a seus 96 anos de idade – “um enterro belíssimo, digno de um rei!” E foi então, e só então, que se viu o quanto o Cunhado fazia falta naquela família.
E foi assim, que se deu a passagem do Cunhado entre nós. Suas histórias, seus casos pitorescos, suas “picuinhas”, como diria sua viúva, ficaram como álbum de memória pra todos nós.































MARINA

E quando ela sorriu, toda a dor e tristeza desapareceram”














A luz difusa que entra pela janela do quarto de hospital, onde embalo meu neto que acaba de nascer, enquanto sua mãe dorme no leito recuperando-se da cesárea, me leva de volta a vinte e cinco anos antes, a uma maternidade pública na mesma cidade.

25 ANOS ANTES

Acordo de um sonho ruim onde uma bruxa malvada rouba minha filha no momento em que ela nascera. Da janela do quarto de hospital, uma luz bruxuleante ilumina o quadrado do quarto aos pés do meu leito. Em meio ao jato de luz, uma mulher segura meu bebê bem apertado nos braços. Em desespero, tento levantar-me do leito e tomá-la de volta.
- Me devolve minha filha. Por favor, não leve meu bebê!
Não consigo levantar-me. Duas mãos de ferro seguram-me fortemente contra a cama, enquanto a velha leva minha filha. Meu desespero aumenta.
- Minha filha! Quem roubou minha filha? Me devolvam minha filha, pelo amor de Deus!
Sinto uma picada no braço, e um sono repentino e angustiante se apodera de mim. É um sono pesado, carregado de pesadelos com minha filha, pessoas tentando tirá-la de mim enquanto eu tento desesperadamente salva-la.
Acordo um pouco mais calma. Uma enfermeira cochila aos pés do meu leito. Sinto a cabeça e os braços pesados, tento levanta-los e não consigo. Só então me dou conta de que estão amarrados à cama. Meu movimento para tentar soltar-me acorda a enfermeira, que se levanta e se aproxima. Coloca a mão na minha testa.
- Está se sentindo melhor? Não parece ter febre - mesmo assim, coloca um termômetro na minha boca.
- Por que estou amarrada? - pergunto entre dentes, com o termômetro na boca.
- Você deu um trabalhão. Tentou agredir todo mundo, e eles precisaram te dar um calmante. Ainda assim você continuou agressiva, e as enfermeiras preferiram te amarrar. Mas parece estar mais calma. Vou chamar uma delas pra ver se posso te soltar.
- Você não é enfermeira?
- Não. Só estou ajudando aqui no bloco. Espere, volto já. Não fique nervosa, ou elas não te soltam, viu?
A mulher sai do quarto, e eu novamente começo a sentir aquele desespero sufocante, como se alguém quisesse a qualquer custo levar minha filha. A primeira vontade é de gritar, gritar desesperadamente por socorro, mas me lembro que preciso me acalmar para que me soltem, e faço um enorme esforço para esperar a volta da mulher. Tento lembrar-me do rosto de minha filhinha, na esperança que isto me acalme. A principio funciona, mas aos poucos o desespero vai voltando, como se uma mão invisível tentasse me estrangular enquanto leva minha filha.
A mulher volta, acompanhada de outra mulher, que retira o termômetro que ela deixara em meus lábios, toma meu pulso e olha minhas pupilas.
- Olá Da. Carla. Sou a Dra. Celine. Como está se sentindo?
- Não sei. Acho que me sinto bem. O que houve? Porque estou amarrada? Onde está minha filha?
- Você esta amarrada para seu próprio bem. Você esteve um pouco agressiva, tentou agredir as enfermeiras. Às vezes isto acontece com parturientes, mas não é muito comum. Quanto à sua filha, está no berçário. É uma menina linda, forte, saudável, não tem porque se preocupar com ela. Nós temos agora que nos preocuparmos com você. Assim que estiver em condições, nós vamos trazê-la pra você, ok?
- O que quer dizer “estar em condições?” Eu estou em condições de ver minha filha!
- Eu vou soltar você, mas vai ter que se acalmar. Primeiro vamos conversar um pouco, você vai me responder algumas perguntas, e se correr tudo bem, eu deixo você livre e quando eu tiver plena certeza que você pode, eu mando trazer sua filha pra você ver, ok?
- Isto é angustiante, Doutora! Eu quero ver minha filha ver se está tudo bem mesmo com ela. Eu quero senti-la perto de mim! Vocês levaram ela embora, alguém roubou ela de mim!
- Calma! Aí, você já está se excitando! Se não se acalmar não tenho como trazer sua filha. Além de prezar pela sua saúde, tenho que prezar o bem estar do bebê, e enquanto não tiver certeza que você não é ameaça ao bem estar dele, não posso colocá-lo junto com você, está entendendo?
Meu desespero aumenta, mas preciso me acalmar e por isso me esforço.
- Ela está mesmo bem, dona?
- Está! Pode confiar em mim.
A Dra.Celine solta minhas mãos e levanta a cabeceira da cama, me colocando meio sentada.
- Você deu entrada no hospital sozinha. Não tem acompanhante?
- Não. Meu marido morreu há alguns dias. Nós não temos parentes aqui, a gente veio de mudança por causa do trabalho dele.
- Você sabe que sua filha nasceu antes da hora?
- Sei. A gente estava fazendo o pré-natal direitinho, mas com a morte dele, minha vida tornou-se um caos, e acho que a tensão nervosa acabou provocando o parto.
- É, pode ser. É um dos motivos prováveis. Você fuma, faz uso de álcool, drogas?
- Não. Nem uma coisa nem outra.
- E calmantes, já fez ou faz uso?
- Não. Com a morte de Cláudio o médico me receitou uns remédios, mas eu acabei não conseguindo tomar nada.
- Você se lembra do que aconteceu ontem, quando você começou a gritar com as enfermeiras e tentou agredi-las?
- Eu não me lembro de agredir ninguém! Só me lembro de que alguém queria roubar minha filha, e estava levando ela de mim, e eu queria desesperadamente recuperá-la, mas não conseguia me levantar, e tudo parecia ao mesmo tempo um sonho ruim e muito real!
Sinto que o desespero volta dentro de mim. A médica segura fortemente meu braço, evitando que eu comece a gesticular.
- Ok! Calma! Não vá se exaltar agora. Estamos indo muito bem! Relaxe, respire fundo, assim, isso, devagar! Ok? Está se sentindo melhor?
Lentamente vou me sentindo acalmar. Relaxo e solto o peso do corpo na cama.
- Por que achou que alguém queria roubar sua filha?
- Não sei. Só sei que acordei e havia alguém ali (aponto em direção ao vão da janela) com minha filha nos braços e que para mim ia leva-la embora.
A médica chama a enfermeira que estivera cochilando aos pés da cama.
- Ela se parece com alguém que você viu?
Olho atentamente para a mulher. É uma velha, com rugas no rosto e nas mãos, aparência de pessoas que passaram a vida sob um sol forte, subjugadas por trabalho duro.
Com pouco, vejo nela a bruxa que carregava nos braços minha filha. Novamente minha respiração parece acelerar e o desespero advém. A médica parece perceber o que acontece, e novamente me segura pelo braço e me fala palavras para me acalmar.
- Ela é a Da. Marina. É uma voluntária aqui do hospital. Ela cuida de mães e bebês recém-nascidos, que têm dificuldades de adaptação, ou que simplesmente estão sem acompanhantes, e olha, aqui neste hospital é muita gente que vem e vai sozinha, sem uma palavra amiga, sem um braço para apóia-la na hora difícil, sem uma mão amiga pra ajuda-la na primeira troca. (a médica parece se emocionar) Da. Marina tem cuidado de você desde que você deu entrada no hospital. No preparo, no parto, no pós operatório, no quarto. Ah, e tem olhado também pela sua filha. Eu sei que o momento pode ter sido assim um tanto lúdico, você voltando da anestesia, aí acontece mesmo da gente ver coisas, alguns fantasmas, a imaginação prega peças na gente.
A médica se levanta, Marina toma seu lugar ao meu lado. Toma minhas mãos entre as suas e me faz um leve afago nos cabelos. Sinto-me mal, primeiro por ter causado aquela confusão, segundo pelo sentimento de comiseração que estou provocando, que antes de me trazer alento me traz grande desconforto.
- Está melhor? Acha que a confusão está desfeita e que posso trazer sua filha pra você ver?
Faço que sim com a cabeça. “Tem certeza? Se preferir, posso deixar você descansar um pouco mais. Ela está sendo muito bem tratada no berçário. Aqui é um hospital público, mas o pessoal daqui é muito bom”!
- Não. Estou bem e estou doida pra ver minha filha. Pode mandar ela pra mim.
- Ok! Qualquer coisa, Da. Marina cuida para você. Até outra hora. Antes de te dar alta, volto para de dar algumas instruções, afinal, marinheiro de primeira viagem já fomos todas, não é Da. Marina?
- É verdade, minha filha - diz Da. Marina, se dirigindo a mim. Não se preocupe, você e sua filha estão em boas mãos.
- Posso me sentar, dra?
- Claro. Mas não faça muito esforço. Deixe que alguém te ajude. Amanhã eu volto para te ver. Você tem para onde ir?
- Tenho. Eu tenho meu apartamento. É pra lá que nós vamos.
- Ok, até amanhã então!
Aceno um adeus, enquanto Da. Marina me ajuda a sentar na cama. Pega na mesinha uma sopa rala e fria e se esforça para me fazer comer. Não sinto fome ou apetite. Tudo em que consigo pensar é na minha filha e na imagem que não me sai da cabeça, de Da.Marina com ela nos braços, e a sensação que não me abandona de que a velha tentava roubá-la. Uma enfermeira entra com minha filha enrolada em um pequeno cobertor do hospital e a entrega a mim. Me dá orientações sobre como oferecer-lhe o peito, revezando os seios, puxando os bicos pra facilitar para que ela consiga pegar, como higienizar, como evitar que o leite empedre, etc.
Enquanto a enfermeira dá as orientações. Da. Marina mantém-se quieta sentada na cadeira de acompanhante. A tarde é completamente diferente. A presença de minha filha me dá novo ânimo, eu me sinto viva, com forças para enfrentar o mundo inteiro por ela. A morte de meu marido havia sido um “baque” que eu achei que jamais superaria. Eu fiquei totalmente sem ação, não fora capaz de tomar nenhuma providência prática, como tratar de seguro, pedido de pensão e coisas do tipo. Sozinha naquela cidade imensa, passava os dias chorando trancada dentro de casa, e com pouco mais de duas semanas, mais ou menos uns vinte dias antes da data marcada pelo médico, minha filha resolvera nascer, talvez devido ao trauma. Ocupo todo meu tempo com ela. De repente, não sei como, sinto-me forte, saudável, animada. Todas as dores, angústias, tristezas que sentira até então se foram totalmente. Da. Marina conta causos de sua terra natal. Curiosamente, não fala da família. Quando a enfermeira chega para levar minha filha, leva também minha acompanhante. Ela se despede, com promessas de voltar no dia seguinte bem cedo.
Na manhã seguinte, antes da médica me visitar, chega Da. Marina. Vem junto com o café da manhã, e fica no quarto, aparentemente esquecida dos demais pacientes. Depois de algum tempo, pergunto.
- Da. Marina, a senhora não tem outros pacientes para ajudar, não?
- Por que, minha filha? Estou incomodando?
- Não! Não é isso. É que a sra. está aqui há tanto tempo, e a dra. disse que a senhora é voluntária para auxiliar mães em necessidade como eu, aí eu fiquei pensando: será que sou a única aqui que está precisando de ajuda? Porque eu já me sinto bem, se a sra. tiver mais alguém para ajudar, pode me deixar sozinha que eu já consigo me virar.
- Eu tenho certeza que sim, mas vou esperar a dra. Celine passar por aqui. Aí a gente vai tomar um banho bem quentinho e gostoso, trocar esta roupa de cama, aí eu vou ver se mais alguém precisa de mim. Tá bom assim?
- Eu não estou mandando a sra. embora não. Muito pelo contrário! Sua companhia é bem agradável, e ficar sozinha também não é nada bom. Só pensei que estava ocupando a sra demais e que talvez a sra tivesse mais alguém com quem se preocupar, mas se não, tanto melhor para mim. Ter a sra aqui comigo é muito bom!
Neste momento entra a dra. Celine, com um sorriso iluminante no rosto.
- Ora, ora, bons dias! Mas quem diria! Que carinha mais alegre! Nem parece a mesma mamãe que eu atendi ontem!
- Bom dia dra! (tento me sentar) Estou realmente me sentindo outra depois que vi minha filha.
-Viu? Não te falei que estava tudo bem com ela? Mas não se sente. Fique aí mesmo, deitadinha, que eu vou te examinar.
A dra.Celine coloca o termômetro na minha boca enquanto mede a pressão.
- E sua garotinha? É linda não? Com quem se parece?
- Não sei, dra! Criança recém nascida parece que não se parece com ninguém, não dá pra definir, mas eu acho que ela lembra demais o pai.
A médica parece se lembrar da morte de meu marido e sente que pode ter falado o que não devia. “Desculpe. Não quis trazer lembranças ruins.”
- Não tem problema. Acho que me lembrar agora até me ajuda, me faz criar coragem para cuidar de minha filha. Ela vai precisar demais de mim, mas não vou deixar de contar a ela como era o pai dela.
Ela retira o aparelho de pressão e o termômetro.
- Bom, a temperatura está boa, mas a pressão não. Você está com a pressão arterial muito alta. A gente vai ter que te segurar aqui pelo menos até amanhã, pra ver se volta ao normal. No mais, não tem qualquer problema. (volta-se para da. Marina, toca-lhe na mão) Vai poder curtir mais um dia a companhia deste anjo que Deus nos mandou. Não é caso para preocupação. Isso não é normal, mas diante de sua situação, o bebê nascer antes da hora, as emoções que você viveu... bom, a gente vai só se precaver um pouco mais, está bom assim?
- Para mim está bem. Eu só quero chegar em casa boa pra cuidar de minha filha. Não posso ter qualquer tipo de problema, seja de saúde ou não.
- Então estamos combinadas. Amanhã bem cedinho eu venho te ver e se estiver tudo certo eu te libero. Tchau. Até amanhã.
- Tchau dra. Vá com Deus! - diz da. Marina.
Da. Marina me ajuda a levantar. Praticamente me carrega até o banheiro, me ajuda no banho. Visto roupa limpa, e me sinto outra. Mais animada, nova, reabilitada. Sei que pressão alta não é coisa simples, mas também não é caso para me arrasar. Prefiro sentar-me à espera de minha filha. De repente lembro-me de meu marido, e sinto uma tristeza enorme por ele não estar ali, não conhecer nossa filha, não poder tê-la nos braços, vê-la crescer, tornar-se moça, mulher, mãe. Então decido que serei mãe e pai para ela, e que todos os dias farei que ela ame o pai que não conheceu pessoalmente, mas que conhecerá através de minhas lembranças.
A enfermeira chega com minha filha. Eu ofereço o seio, que ela abocanha e chupa com vontade. Vê-la sugar meu seio dá-me mais ânimo. De repente me dou conta que ao contrário do que poderia se esperar, o nascimento de minha filha nas condições que acontecera, longe de me abater dera-me uma coragem que jamais esperara possuir. Aí então me lembro de que não escolhera seu nome. Quando meu marido viajara a trabalho eu estava com menos de cinco meses de gravidez. Ele fora para ficar cinco meses, e havíamos nos prometido escolher o nome quando ele voltasse, mas a tragédia acontecera antes. Penso em tantos nomes, mas parece que nenhum é adequado.
Da. Marina havia saído, não sei se porque tinha alguém para auxiliar, ou se por causa do que eu falara. Fico sozinha com minha filha por alguns minutos. Ela mama e dorme. Coloco-a no berço e tento caminhar um pouco pelo quarto, quando entra uma enfermeira, que me dá um comprimido para tomar. Tomo a medicação e volto a me deitar. Ela puxa conversa enquanto olha o bebê no berço.
- Ela é linda. Parece com você!
Tento sorrir. “Não sei. Acho que lembra mais o pai”.
- É? E ele, onde está?
Respondo o mais naturalmente que consigo: “Ele faleceu antes dela nascer”.
A surpresa se estampa em seu rosto: “Desculpe! Eu não sabia!”.
- Não tem problema. Deus nos dá, Deus nos tira. A vida tem que continuar. Me tirou o marido mas me deu uma filha linda, cheia de saúde, que eu vou amar por  nós dois.
Eu mesma me surpreendo com minha resposta. Parece-me tão fria que fico um tanto envergonhada com medo do que a enfermeira possa pensar, mas ela não dá sinais de se surpreender. “Já deve ter visto e ouvido de tudo!” penso.
- Aqui no hospital tem muitas voluntárias como da. Marina?
A enfermeira agora está trocando as roupas de cama, e responde enquanto amarra as pontas dos lençóis para prendê-los ao colchão.
- Sim. A Santa Casa sempre foi um hospital de voluntariado. Aqui já trabalhou como voluntário todo tipo de gente, de classe alta a baixa (inclina-se para meu lado, e fala mais baixo que antes, quase num sussurro): mas a Vó Marina não é voluntária - olha para a porta, como a conferir se ninguém a ouve - Ela é assim, quase uma indigente.
- Indigente? Como?
- Ela mora aqui no hospital. Ela veio para tratar de um câncer, a família a abandonou aqui, aí ela não tinha pra onde ir e foi ficando no hospital. (Agora ela parou sua tarefa e continua a narrativa, de braços cruzados com um lençol entre eles) No começo a diretoria do hospital tentou arrumar um lugar pra ela ficar, e coisa e tal, mas não conseguiram, aí ela foi se arranjando. De dia fica pelas enfermarias, ajuda uma mãe aqui, outra ali. De noite, se tem um leito vazio, ela dorme numa enfermaria, se não tem, ela se arranja no almoxarifado, na sala de descanso dos médicos. Mas uma coisa é certa, depois que ela está aqui, este hospital mudou! Ela é de um astral incrível. Apesar da doença - ela tem que fazer quimioterapia quase todo dia, ela nunca está de cara feia, nem desanimada. E já ajudou muitas mães aqui. Descruza os braços, coloca o lençol sobre os travesseiros na gaveta do móvel do acompanhante. A primeira mãe que ela ajudou foi a Margarida. Nossa, ninguém consegue esquecer ela!
Vai até o berço, confere se minha filha está mesmo dormindo, puxa o cobertor cobrindo-a, vem até minha cama e me ajuda a me deitar, arruma o lençol e acerta o travesseiro sob minha cabeça.
- Quem é Margarida?- pergunto.
- Ela chegou aqui numa tarde de domingo. O Pronto Socorro tava apinhado de gente. Parece que o cão tinha se soltado naquele dia! Ela tava grávida de gêmeos, e dizia que odiava eles, que não queria eles, que eles iam acabar com a vida dela, aí ela esfaqueou eles dentro da barriga.
Sinto arrepios e sensação de nojo em pensar na imagem.
- Ela chegou toda ensanguentada. O hospital todo correu pra salvar os bebês. Ninguém acreditava que pudesse salvar eles. Só Deus! Pois o Dr. Armindo operou ela e salvou os dois e ainda conseguiu salvar a Margarida. Ela, sei lá, parece que ela na verdade não teve coragem de matar os filhos. Ela furou a barriga toda, mas não feriu nenhum deles nem nenhum órgão. Só perdeu muito sangue, teve que ficar na UTI por quase uma semana. Da. Marina ficou com ela o tempo todo, igual um cachorrinho. Nunca tinha visto ela na vida, mas tomou conta dela. Na UTI ela não podia ficar no quarto, ficava do lado de fora. Quando ela veio pra enfermaria, a Vó Marina só saía de perto dela pra ir pra quimioterapia. Aí, quando ela ficou boa e não queria nem ver os filhos, que ia dar eles e coisa e tal, a Vó Marina conversou com ela, e repreendeu, e fez e aconteceu que ela saiu daqui com os dois filhos e dizendo que não ia mais dar eles não. E ela é assim com todo mundo que precisa dela. Até a gente, se a gente tá meio assim pra baixo, triste, chateada, a gente vai lá, leva uma conversa com ela e sai de lá mais animada.
Enquanto ela contava a história de Margarida, entra outra enfermeira.
- Suely, você tá maluca menina? Não devia contar esta história pra ela. Ela ainda está se recuperando e você contando estas maluquices pra ela! Se a dra. Celine te pega, vai ver no que vai dar!
Eu realmente havia me sensibilizado com a história, mas menos do que pensara a princípio. Tentava imaginar como alguém poderia fazer uma coisa como aquela. Teria que estar muito desesperada. De repente, não sei explicar porque, me vi rezando em silêncio pela minha filha, por Margarida e seus filhos, por vó Marina e por não sei quem mais.
- Não tem problema. Eu estou bem, mas acho que quero descansar um pouco.
Elas entendem. Suely novamente acomoda o travesseiro sob minha cabeça e se despede.
- Se precisar de alguma coisa é só puxar a cordinha que a gente vem rapidinho.
- Por favor! Você pode colocar o bercinho aqui bem perto de mim?
- Claro - Ela puxa o berço e o encosta na cama. Eu me viro em direção a ele, confiro se minha filha está dormindo e logo adormeço, com a mão sobre a lateral do pequeno berço.

Quando acordo, vó Marina está sentada no sofá de acompanhante. Ela entrara sem me acordar. Engraçado! Já começara a chamá-la de vó Marina, como as enfermeiras. Alguma coisa nos ligava. Algo que eu não compreendia nem sabia o que era, mas que me animava. A presença dela era como um grande conforto, uma certeza de segurança que eu não sabia explicar.
Meu marido havia falecido e me deixado com um plano de saúde que me dava um conforto maior na situação que vivia. Um quarto com acompanhante, que eu não tinha, mas que Deus enviara para me socorrer.
A tarde passa alegre. Quando minha filha acorda, coloco-a no colo, sinto-a no meu peito. Vó Marina tira toda sua roupa deixando-a nua, manda que eu tire minha camisola e coloca-a sobre meu corpo. Sentir minha filha junto a mim é uma experiência que não é possível descrever. Sentir sua pele em contato com a minha, seu cheiro, seu calor, sua respiração quase em sintonia com a minha. Sinto vontade de abraçá-la, aperta-la com força, faze-la voltar para dentro de mim, mas meu único gesto é olha-la, observa-la, acompanhar cada movimento que ela tenta fazer. De repente, sem que eu consiga segurar, um choro convulsivo explode de dentro de mim. Vó Marina vem correndo, tira de sobre mim minha filha que se assusta e também começa a chorar. Vó Marina veste-a novamente e a acalenta. Apenas acompanha meu choro sem nada dizer. A sensação de tristeza vai aos poucos mudando, e sem que eu me dê conta, ela se transforma numa alegria que parece encher todo o quarto. Então começo a rir, as lágrimas de choro se confundem com as lágrimas de felicidade, eu me viro em direção à minha filha que vó Marina colocara no berço e a calma toma conta de mim. Me viro para a anciã. Ela apenas me observa sem nada dizer. Quando percebe que eu já estou mais calma, senta-se na beirada da cama e acarinha minhas pernas, como uma mãe faria na tentativa de dizer: “estou aqui pro que der e vier, pode contar comigo!” Ela volta a sentar-se na cadeira de acompanhante. Surpreendentemente não precisamos dizer nada. Nos entendemos, como se fôssemos velhas amigas, mãe e filha, ou avó e neta, talvez.
Café da tarde, banho, jantar, preparar o bebê para voltar ao berçário (ela não passa a noite com a mãe), troca de informações e histórias pessoais, me preparar para dormir. Ela faz tudo com um carinho e uma dedicação que me faz sentir segura e confortável. Quando dra. Celine chega pela manhã, eu ainda estou dormindo, mas a vó Marina já está de pé.
- Então? Como está minha garota? E vó Marina, está cuidando direitinho de você?
- Puxa, vó Marina é um anjo que Deus mandou pra cuidar de mim! Não fosse ela, não sei como teria suportado ficar aqui presa neste quarto.
A médica dá um beijo carinhoso na velha. “Ela é mesmo um anjo!”
- Mas como foi seu dia, tudo ok?
- Sim. Não tive nenhum problema, não senti dores, nada!
- Ela já desabafou um pouco, dra. Acho que hoje as coisas vão começar a chegar no lugar, ela vai começar a ver a realidade, e aí a vida volta ao normal - diz vó Marina.
- Bom, não tem como fugir da realidade. Mais cedo ou mais tarde a gente tem que sair deste quarto quentinho e voltar pro mundão lá de fora. Então vamos ver como você está para ver se pode voar.
Ela novamente toma minha temperatura e minha pressão. “Bom, parece que está tudo em ordem. Já verifiquei sua ficha, as medições que foram feitas durante o dia e a noite de ontem também estavam dentro do normal, assim vou te liberar hoje”. Ela me faz um carinho, bate suavemente na minha perna. “Pode ir se arrumando, toma um banho, coloca sua roupa mais bonita, que sua filha já vai subir pra vocês irem para casa. Tem alguém para te ajudar?”
Vó Marina olha para mim, que olho para ela. “Não! Somos só eu e minha filha”.
- Ah, e sua filha? Já escolheu o nome?
- Marina!
Não consigo explicar nem saber de onde veio o nome. Falara sem me dar conta, de supetão. Mas mesmo assim, sinto uma segurança em relação à escolha que não sentira em nenhum momento antes.
- Olha vó Marina! Ela vai ter o seu nome? - a médica volta-se para mim: “Já estava escolhido, ou você escolheu aqui?”
- Na verdade eu ainda não tinha parado pra pensar no nome, mas acho que Deus já tinha escolhido pra mim.
A médica fica sensibilizada, faz um muxoxo com os lábios e nada diz.
- Bom. Então está tudo resolvido. Vó Marina, ajuda ela a se preparar que eu vou assinar a alta.
Ela despede-se, desejando felicidades e se oferecendo para futuras necessidades. A velha novamente me ajuda. Banho, roupa limpa, arrumação de minhas coisas (de onde veio tanta tralha?), me penteio, me pinto de forma simples e ficamos a conversar enquanto esperamos por Marina. Na conversa que travamos minha filha já tem nome, e é uma alegria nova trata-la pelo nome: Marina! De uma forma inexplicável para mim, aquele nome toma uma expressão inesperada. É como se a afirmação que eu fizera à médica: “Deus já tinha escolhido para mim” me enchesse de coragem e segurança, quanto a ela e seu futuro (como se um simples nome pudesse dar a um recém nascido alguma segurança de futuro!).
Vó Marina (é tão confortante chamá-la de vó) fica à espera da liberação médica, para me fazer companhia. Iniciamos uma conversa para passar o tempo. Eu falo de minha vida com meu marido, seu trabalho, sua morte, como as coisas foram difíceis, que eu fiquei totalmente passada, sem conseguir coordenar minhas atitudes; o sepultamento, providenciado pela empresa porque eu não consegui fazê-lo, o nascimento de Marina antes da hora. Ela me fala de sua vida no interior, que fora professora primária, e que agora não mais tinha utilidade para ninguém, e que isso a deixava muito triste. A família crescera e se espalhara e ela ficara sozinha. Explica que ao contrário do que o pessoal do hospital pensava, ela não havia sido abandonada pela família, mas que fora uma opção sua. Ao ver que podia ser novamente útil ali no hospital, decidira ficar e armara a situação de abandono. Sabia que sua doença iria levá-la à morte em breve, mas isso dia ou outro aconteceria mesmo, portanto não poderia ser motivo para desespero ou rancor com a vida ou qualquer pessoa.
Aquela mulher não parava de me surpreender. Sua coragem e força interior pareciam uma luz para iluminar o mundo.
- Por que você não vem comigo? Morar comigo? Eu tomo conta da senhora, e a sra. toma conta de mim e de Marina?
Novamente me surpreendo com o que digo. Veio tudo de uma vez, numa explosão. Então cresce dentro de mim um  verdadeiro pânico,  não de que ela aceite, mas de que ela recuse. Sua surpresa também se estampa no rosto.
- Não sei. A idéia parece boa, mas mais pessoas precisam de mim aqui.
Eu inesperadamente até para mim mesma, insisto: “a sra. pode continuar ajudando aqui. Não precisa abandonar totalmente o hospital”.
- Tem certeza? E se não der certo? Se a gente não se entender?
Eu tomo as mãos dela entre as minhas.
- Eu tenho certeza que a gente vai se entender muito bem! Vai, pega suas coisas. Vem comigo!
Um alegre sorriso nasce em seu rosto. Abre os braços e fecha-os novamente: “Minhas coisas estão aqui. É tudo que eu tenho”, diz, referindo-os à roupa que usa. Nos abraçamos, e eu sinto um conforto, uma alegria e uma segurança que há muito não sentia.

A presença de vó Marina em minha casa me dá uma segurança e confiança inesperada. Sinto-me mais animada em retomar o dia a dia, a enfrentar as necessidades domésticas. Ela organiza a casa, o quarto de Marina, que eu não tivera coragem de preparar devido à morte de Cláudio. Com sua ajuda reorganizo minha vida. Providencio o resgate do seguro e dos benefícios que meu marido me deixara. A empresa em que trabalhava, uma multinacional, oferecia vários benefícios, e como ele morrera em serviço, eu recebera seu seguro de vida e mais o seguro de acidente de trabalho que a empresa pagava. Minha situação financeira fica bem estável. Juntas, eu e vó Marina decidimos adquirir um apartamento próximo ao hospital, o que facilitará seu tratamento e seu trabalho voluntário. Sem trabalhar desde que me casara, depois de muitas tentativas sem sucesso, consigo trabalho como secretária numa editora, e logo consigo “bicos” como revisora, o que me anima bastante.
A saudade de Cláudio às vezes bate forte, então eu me escondo no quarto e choro sozinha. Vó Marina muitas vezes percebe e nada diz, outras tenta me consolar. Senta-se à cabeceira da cama, coloca minha cabeça no colo e faz carinho nos meus cabelos enquanto canta uma cantiga de ninar, ou uma música de seu tempo.
Nas tardes livres quase sempre contamos histórias de nossas infâncias. Falo de minha mãe, que deixei no nordeste e há muito não vejo. Ela fala da vida no campo, na fazenda de seu avô, que ele perdera em uma noite de bebidas, mulheres e jogatina. Fala de seus amores da juventude, alguns correspondidos outros platônicos, dos alunos, nomes que se perderam nas brumas dos anos. Nossa vida é simples, mas bastante animada e alegre. Com o crescimento de Marina, faz-se necessário adquirir um automóvel. Tenho que reaprender a dirigir, coisa que não fazia havia muito tempo. Com a nova aquisição, nossos horizontes se expandem e passamos e fazer pequenos passeios nos finais de semana e feriados. Nos aniversários da pequena Marina vó Marina sempre prepara uma linda festa. Sua doença aparenta estar sob controle, embora ela não tenha se curado definitivamente.
Num domingo em que falamos de nossos parentes, ela me pergunta.
- Você nunca mais voltou em sua casa, foi ver sua família depois que veio morar aqui?
Para minha surpresa, não me sinto muito à vontade para falar do assunto. Paro o que estou fazendo, firmo o olhar ao longe.
- Nunca! Acho que nem mesmo mandei notícias. Pra falar a verdade, nem sei se contei que fiquei viúva e que tenho uma filha.
- Que coisa mais maluca, menina! Como alguém pode esquecer os seus deste jeito? E não sente falta deles, de saber notícias, de dar notícias?
- Às vezes! Mas sei lá, parece que a gente vai levando a vida de maneira tão mecânica que a gente acaba esquecendo das pessoas. Olha vó, pensando bem, acho que nunca escrevi uma carta na vida. Só pro meu marido, e assim mesmo quando ele estava longe trabalhando.
Vó Marina se levanta, me dá um abraço apertado, um leve beijo no rosto.
- Pois que tal a gente ir visitar a sua família e a minha? Suas férias começam daqui a alguns dias, a gente poderia pegar algumas coisas, colocar no carro e passear alguns dias. Que tal?
- É! E por que não?
Marina já completou três anos, já está grande o suficiente. Vó Marina me garante que pode fazer a viagem, que está e se sente bem. A viagem é alto astral. Nós não temos pressa. Só viajamos durante o dia. Ao fim da tarde sempre encontramos algum lugar agradável e aconchegante para passar a noite. Muitos pôr e alguns nascer do sol nos encontram abraçadas, em alegre admiração. Reencontrar minha mãe e meus irmãos é uma experiência revigorante, que eu mesma não esperava apreciar. A viagem de volta é animada da mesma forma, entretanto fico apreensiva. Parece-me que alguma coisa não está correta, mas não consigo descobrir o que é. Vó Marina não aparenta a mesma alegria que antes, mas apesar de minha insistência teima em afirmar que está bem.
Chegamos num sábado. No domingo, quando acordo Vó Marina ainda não se levantou. Fico apreensiva, pois ela habitualmente se levanta antes de mim. Quando vou ao seu quarto conferir, ela está desmaiada no chão. Chamo uma ambulância, pois embora o hospital seja perto ela precisa de socorro urgente. Vó Marina passa seis semanas internada. Este período é um verdadeiro caos na minha vida. Tenho que adaptar meus horários para deixar a pequena Marina na escola, poder trabalhar e ir acompanhar vó Marina no hospital. Com tudo isso, em nenhum momento eu flagrei qualquer sinal de desespero, tristeza ou mau humor em seu rosto. A alegria e confiança que ela demonstrava nem sempre conseguia me contagiar. Mesmo assim, eu e a pequena Marina esperávamos por ela com seu cantinho como ela gostava. Em frente ao prédio em que morávamos havia um grande jardim repleto de rosas de várias cores. Todas as tardes quando eu chegava com Marina, ela colhia uma pequena rosa para colocar na jarra do quarto que ela dividia com vó Marina.
Mais uma vez ela nos surpreende. Vó Marina volta para casa com ânimo novo. Quem não sabe de suas dores, não acredita que aquela velha anciã pode ter passado por tudo que passara. Reorganizamos nossa vida. Ela agora precisa passar por um controle mais rígido. Embora sua expectativa de vida tenha decaído enormemente, sua alegria não desvanece em nenhum momento. De forma inexplicável para os médicos, vó Marina segue sua vida, agora de forma mais lenta. Ela se cansa mais facilmente, dorme mais tempo que antes, mas jamais dá mostras de desanimar.
A pequena Marina comemora cinco anos. Proponho a vó Marina que a gente faça apenas uma comemoração simples entre nós, pois ela já não tem as mesmas forças de antes. Ela não aceita. Prepara a festinha com a mesma alegria de sempre, apenas com menos energia. Contrato uma organizadora de festas para auxilia-la, mas com uma determinação explícita: “faça tudo conforme as ordens e o gosto dela, nem mais, nem menos”. A festa é uma grande alegria, como sempre.
Na manhã seguinte quando acordo, sou surpreendida mais uma vez. Vó Marina já se levantou e preparou o café da manhã, o que ela não fazia desde a internação. A mesa está à nossa espera. Marina bate palmas e abraça as pernas da avó.
- Ora, que surpresa é essa? A mesa está linda!
- Eu estava morrendo de saudades de preparar a mesa do café, não agüentava mais aquela história de receber o café na cama.
- Pois eu bem que gosto. Se pudesse receberia o meu na cama todo dia.
Vó Marina deixa morrer o sorriso no rosto.
- Carla, eu queria te pedir uma coisa.
Engulo o pão que acabara de colocar na boca.
- Me pedir? Vó, me pedir? (cutuco Marina) O que será que vovó Marina vai pedir? Eu acho que ela quer fazer um cruzeiro para a Europa, pra conhecer a Itália e se casar com um velho italiano bem milionário! - brinco com a pequena.
- Eu queria ir ver minha família.
Novamente fico surpresa.
- Ver sua família? Mas você acha que vai conseguir fazer a viagem?
- Pra falar a verdade eu não sei. Só sei que vai ser a última oportunidade que vou ter de ver algum dos meus parentes, alguns amigos antigos (pela primeira vez desde que nos conhecemos vejo uma lágrima se formar em seus olhos).
Sinto uma vontade enorme de chorar. Olho para minha filha e percebo que ela também está pronta para o pranto. Abraço as duas com força.
- Claro. Claro que nós vamos, não é Marina? Quando você quer ir?
- Hoje, amanhã. Assim que você puder.
- Hoje mesmo eu vou falar com meu chefe, ver se consigo uma semana. Se ele me liberar, amanhã a gente vai, ok? A Marina pode faltar de aula, não tem problema. E a sua medicação, como fica?
- Eu posso me agüentar alguns dias sem ir ao hospital. Afinal, a medicação já não está mais fazendo efeito mesmo, não é?
Ver aquela mulher, tão cheia de energia, coragem e animação todos aqueles anos de repente cair daquela forma me faz desmoronar. Sinto-me só e abandonada como jamais me sentira, nem mesmo quando Cláudio morrera, mas ao mesmo tempo sei que não posso deixar transparecer a ela. Ela, que me dera ânimo e coragem sempre que eu precisara agora precisava de meu apoio incondicional e irrestrito. Eu teria que encontrar forças onde nunca imaginara.
Apesar de todas as dificuldades, a viagem é bastante alegre. Vó Marina é muito bem recebida por todos. Mais uma vez ela me surpreende. Embora eu não tivesse conhecimento, ela se correspondera com diversos amigos e parentes todo o tempo em que convivêramos. Todos sabiam de suas andanças, de sua verdadeira situação de saúde, e ela estava atualizada com muitas coisas da vida deles. Ao nos despedirmos, todos sabiam que era a última vez que se viam. Ainda assim, se despedem como se fossem se encontrar no dia seguinte. A viagem de volta é feita em um silêncio pesado, que só conseguimos quebrar já quase em casa. Falamos amenidades, sobre cada pessoa visitada, como estavam, como eram quando crianças, etc.
Cinco dias depois, acordo altas horas da noite assustada ouvindo vozes. Antes de me levantar, aguço os ouvidos para tentar descobrir de onde vem o som, e percebo ser a voz de vó Marina. Tento entender o que ela diz, mas não consigo. Acendo a luz e vou em direção ao seu quarto. Quando acendo a luz, ela acorda e me olha com um olhar cansado mas sem tristeza.
- Filha (pela primeira vez ela me chama assim, sempre me tratava pelo nome), pega Marina e coloca ela na sua cama.
Pego a menina suavemente e a coloco em minha cama, cobrindo-a para que ela não acorde. Volto ao quarto e me sento à cama de Vó Marina.
- Filha! Olha, não fique triste (as lágrimas já escorrem pelo meu rosto. Ela tenta levantar a mão e tocar meus lábios mas não consegue). Eu queria te deixar uma coisa, está ali na gaveta do meu criado (abro a gaveta, pego um pequeno embrulho). É minha medalhinha de N. S. Perpétuo Socorro. Sei que você não é muito de rezar, mas ela vai te proteger e à nossa Marina. Deus me deu muitas coisas boas pra viver, mas deixou o melhor para o fim. Vocês duas iluminaram minha vida até o último instante. Obrigada!
Obrigada?! Ela me agradece?! Aquela mulher havia me dado tudo. Sem ela eu talvez não tivesse conseguido sobreviver à minha tragédia pessoal, nem teria conseguido educar minha filha, nem conseguido dar a ela o amor que ela merecia. O pânico e o desespero começam a se alastrar dentro de mim, e aí eu olho para vó Marina, já inerte no seu leito de morte, e seu sorriso é como uma explosão de luz que me faz ter certeza que ela estará sempre conosco, nos guiando cada dia com a lembrança de nossos momentos juntos.

Minha filha acorda e sua voz me traz de volta de meu devaneio. Coloco meu neto no berço e dou um beijo e um abraço apertado em Marina. Não consigo segurar as lágrimas que descem silenciosas.
- O que foi mamãe? Ta assustada de ser avó?
- Estava pensando em vó Marina. Ela ia ficar feliz de estar aqui com a gente e conhecer o Cláudinho.
- Sabe mãe, é engraçado você dizer isso. Eu me lembro pouco de vó Marina, mas lá na sala de cirurgia, quando eu estava morrendo de medo de tudo, de morrer, do Cláudinho morrer, de ele nascer com algum problema, eu senti uma mão apertar a minha, aí eu senti direitinho o cheiro da vó Marina, e me deu uma calma tão grande, que eu perdi o medo de tudo. Na hora eu não entendi o que era, mas agora que você falou, eu acho que era ela que estava lá me dando forças como sempre fazia quando eu e você precisávamos dela.
Abraço novamente minha filha, faço-lhe um carinho nos cabelos, beijo-a suavemente no rosto e disfarçadamente aperto a medalhinha que carrego sempre pendurada ao pescoço.






















GORK
O
SENHOR
DO TEMPO
 “as horas tiquetaqueam desesperadamente...”











Tomar o café da manhã no Rubert’s já se tornou um hábito. Gosto de me sentar à mesa que fica bem defronte à janela que dá para a Praça San Genaro. O sol da manhã bate direto no relógio de cristal da Joalheria Savan e reflete na lâmina d’agua do chafariz da Sereia, que parece incendiar-se.
Dali, acompanho o movimento das pessoas que transitam, passando pelo vão da janela. Do outro lado da rua, descendo lentamente o meio fio para atravessá-la, batendo nas pedras a bengala de cega, uma velha rouba minha atenção. Acordo de meu transe matinal, dobro o jornal que fingia ler, limpo os lábios com o guardanapo de linho, alvíssimo,  levanto-me e corro em sua direção.
Atravesso a rua correndo perigosamente entre os carros, desrespeitando as regras de trânsito. Quando a alcanço ela já está no meio da travessia. Toco suavemente seu braço, para evitar um susto desnecessário.
- Mrs. Virginia!
- Quem é? A voz me parece conhecida.
- Gork, senhora. Marc Gork.
Chegamos ao outro lado da rua. Paramos no passeio, minha alegria incontida.
- Quanto tempo! Como está? Podemos tomar um chá juntos? Que tal o “La Luna”?
Sei de sua preferência por bebidas fortes, principalmente rum ou conhaque, a que aprendemos a chamar de “chá”.
- Não tomo mais chá. Renovei minhas opções. Mas é uma grande alegria ouvir a voz de um velho amigo! Que tal o Carlo’s? Lá podemos tomar um chocolate, sentir o calor do sol da manhã e o aroma das rosas.
- Por que não? Vamos ao Carlo’s.
Tomo-a pelo braço e nos dirigimos ao café. Sentamos-nos em uma mesa na calçada. Peço um café, pois havia deixado o meu pelo meio no Rubert’s. Virginia pede um chocolate quente, com pistache e creme.
- Pistache no chocolate quente?
- É uma nova moda. Agora eles estão colocando um monte de coisas no chocolate quente, no sorvete. Há até bebidas geladas com o seu habitual café, nunca experimentou?
- Já vi por aí, mas ainda não tive coragem de experimentar.
- Pois devia. Há algumas bebidas divinas.
Ela toca-me o braço, e segura minha mão.
- Mas conte-me. Como vão as coisas? O que você faz por essas partes do mundo?
- Estou a passeio. Vim visitar alguns amigos antigos. E você? Não sabia que estava morando na cidade.
- Não moro. Só estou de passagem. Estou no apartamento de uma sobrinha. Mas é só por poucos dias. Ainda assim, foi uma grande alegria te encontrar. Marc,. diga-me uma coisa. Eu sempre fiquei curiosa. Porque você assumiu este nome? Marc Gork! Não tem nada a ver com você, com seu nome tão genuinamente brasileiro.
A pergunta me leva de volta a muitos anos passados. Conheci aquela mulher quando éramos jovens os dois. Ela uma escritora já famosa, e eu um jovem professor de línguas, que dividia as horas entre as aulas, o curso de jornalismo já nos derradeiros dias, e o trabalho como revisor em uma grande editora, que na verdade era o que pagava meu curso. Podia ouvir seus gritos, dirigindo-se a mim, por causa de um parágrafo que eu havia corrigido em seu novo livro.
- Você é um idiota! É talvez o maior idiota que encontrei na vida. Não entende nada de literatura. A linguagem literária nada tem a ver com a linguagem jornalística. Uma não se escreve como se escreve a outra. Se você fizer mais qualquer correção no meu texto, eu, eu.... arrrg!!!
Quase posso vê-la jogando o texto em minha direção e saindo da sala chutando as coisas.
- Na verdade meu nome é uma brincadeira. Tem a ver com o primeiro personagem que criei. Se chamava Gork.
- Não me lembro desse personagem, e eu acho que li tudo que você escreveu.
- Eu nunca o publiquei.
- Por que não?
Ela agora toma seu chocolate, enquanto eu brinco com a colher, mexendo meu café que já esfriou.
- É meio complicado.
- Parece que nós dois temos muito tempo, e você agora me deixou curiosa.
- E você, por que não escreve há tanto tempo?
- Eu nunca deixei de escrever. Depois que fiquei cega, aprendi Braile, adquiri um computador com teclas adequadas a minha deficiência, e um programa em que podia ditar meus textos ao computador. Devo ter produzido mais dessa época para cá que em toda minha vida literária. Só me cansei de tudo, e não publiquei nada. Está tudo engavetado em casa. Mas você está desconversando, me conte aí do seu Gork, vá!
- Gork sempre foi um personagem muito difícil. Em nunca tive controle sobre ele. Sempre que eu tentava contar sua história, ele acabava tomando as rédeas, criava vida própria e eu me perdia. Aí preferi deixá-lo congelado num “mundo criogênico”.
- É verdade. Tem alguns personagens que são mais fortes que nós. Mas quem era esse Gork? E por que você assumiu seu nome? Ou você assumiu sua personalidade?
- Sabe que às vezes me pergunto isso? Eu sou eu, ou sou o Gork? Não, eu sou eu mesmo. O Gork era o Senhor do Tempo. Marc vem de “Muito Antes do Relógio ser Criado – MARC”. Aí juntei com Gork, ficou Marc Gork.
- Senhor do tempo? Mas o senhor do tempo não é o Deus Cronos?
- Cronos é o “Deus” do tempo. Na minha história Gork recebe de Cronos o controle do tempo. Mas não é um assunto que me anime muito. Prefiro falar de outra coisa.
- Não desconverse. Conte-me sobre esse Gork, vá!
- Ok! Vá lá!
- Gork era o Senhor do Tempo, e já existia muito antes do homem criar, ou entender, sei lá, o tempo como nós entendemos. Antes de ser inventado qualquer ferramenta de medição do tempo. Ele era o guardião do tempo de todas e para todas as coisas e seres. Controlava as secas, as chuvas, as tempestades, as estações, a hora de nascer, de crescer, de morrer. Só que ele se tornou um grande corrupto, ditatorial, e passou a usar o tempo das coisas e pessoas a seu favor. Como podia controlar o tempo das pessoas, envelhecia aquelas de que não gostava, mantinha novas e vistosas aquelas que queria, e com isso o equilíbrio do mundo, e lógico, do destino, da vida, se perdeu, e tudo se tornou um imenso caos.
- Hora, é uma idéia nova. Já vi e ouvi muitas hipóteses e razões para o caos, mas nunca essa, do Senhor do Tempo!
- Você está debochando de mim!
- Não! Nunca! Estou apenas surpresa. Para mim é realmente uma proposta nova, e devo reconhecer, interessante. Mas vá, continue.
- Talvez não seja uma boa ideia. Não gosto muito de dar asas a ele!
- Você ainda o teme?
- Engraçado você dizer “ainda o teme”. Sempre preferi dizer a mim mesmo que apenas não conseguia controlá-lo e que por isso seria melhor não dar-lhe vida.
- Não é a mesma coisa? Se não consegue controlá-lo, você o teme.
- É uma maneira diferente de dizer, mas é, você tem razão.
- Mas a história não acabou. Continua, vai!
- Por que esse interesse repentino em um personagem que você nem sabia existir?
Virgínia chama o garçom, pede mais uma taça de chocolate com ervas e menta. Seu rosto se abre num sorriso melancólico. Ela pega a bengala que estivera encostada em uma cadeira, gira-a entre as mãos e nela apoiá o queixo.
-É engraçado. Não, engraçado não, curioso, as entrelinhas do destino. Desculpe. Você nunca gostou da ideia de destino. Mas olhe só. Nós nos encontramos casualmente, numa cidade para ambos aparentemente desconhecida, depois de tantos anos sem nos vermos nem nos falarmos, depois de nossas vidas terem se entrelaçado de tantas formas diferentes, e ao invés de falarmos sobre lembranças comuns, sobre o que fizemos nesses anos de ausência, nos vemos falando sobre personagens esquecidos, sobre escritos que fizemos e não tivemos coragem de expor aos olhos de nossos leitores, ou até mesmo de nossos amigos mais chegados. De repente, Marc, nos vemos abrindo nossos baús de segredos com tanta simplicidade que mal nos damos conta de que o fazemos porque estamos tão velhos que nossos segredos já não são mais tão valiosos, nem para nós nem para ninguém.
- Acho que você está interpretando errado. Não se trata de segredos...
Ela me interrompe.
- Não? Não são segredos? De verdade, diga. O que te impediu realmente de contar a história de Gork? Porque a conversa de que não conseguia controlá-lo não pega, porque se você assumiu seu nome, você é capaz de controlá-lo.
Mexo mais uma vez o café na xícara. Tomo o restante, já frio, na tentativa de ganhar tempo.
- Você já teve delírios com seus personagens?
Ela suspira, como quem compreende aonde vou chegar, ou como se árduas lembranças teimassem em boiar.
- Nós tínhamos, eu e Gork, grandes entreveros. Eu muitas vezes me perdi, em discussões sem fim, sobre destino, sobre sua amoralidade, por usar seu poder em benefício próprio, ao ponto de chegar a não saber mais distinguir entre o personagem, quer dizer, entre a ficção e a realidade. Cheguei a achar que estava enlouquecendo. Um dia resolvi sepultá-lo. Escondi todos os manuscritos sobre Gork num armário. Escrevi durante mais de cinco anos com meu nome, até que um dia, numa mudança, ele reapareceu. Aquilo ficou sobre minha escrivaninha mais de dois meses, até que eu tivesse coragem de ler. Li. Reli, mas não fui capaz de cortar ou acrescentar uma linha que fosse. Parecia que Gork debochava de mim. Então tive a grande ideia, usar seu nome como pseudônimo. Pode parecer maluquice de escritor, mas eu podia vê-lo se contorcendo de ódio.
- E o escritor Marc Gork ganhou o estrelato! - Virginia gesticula, como numa explosão de fogos. Aponta o dedo em minha direção, mesmo sem me ver e diz zombeteira.
- Ainda falta alguma coisa. Vá, me conte. Qual é realmente o grande segredo de Gork?
Sinto-me cansado. Não tenho coragem de encará-la, porque naquele momento entendo que havia amado aquela mulher toda minha vida. Não o amor de homem e mulher, carnal, conjugal, mas um amor fraternal, quase de idolatria, e entendo que mesmo sem me dar conta ela havia sido minha musa, e que toda minha literatura tinha sido uma cópia (medíocre, segundo a crítica) do que ela fazia.
- Você não deixa escapar nada?
- Somos escritores, lembra? Estamos sempre perscrutando a alma alheia.
- E sempre deixamos a nossa a descoberto?
- Talvez.
- Gork me disse, num desses nossos entreveros: “Você procura a felicidade numa lâmina de vidro, num carro novo, numa casa cheia de objetos caros, numa mulher bonita. Você me critica por controlar o tempo a meu bel prazer, mas não é capaz de se dar conta de que tudo que você faz é tentar aprisionar o tempo para usar como lhe aprouver, ser dono dele, controlá-lo. Olhe lá fora. venha, olhe. Olhe pela janela. Olhe todas aquelas pessoas, correndo, agitadas, sem se verem, sem se ouvirem, sem se falarem, sem nem mesmo serem capazes de saber que cada palpitar de seus corações faz diferença na harmonia do mundo. Veja você mesmo. Você sabe de sua responsabilidade? Você é capaz de compreender que seu tempo é importante para o tempo do resto do mundo? Você não é capaz de compreender  que o tempo é algo tão tênue que não pode ser aprisionado, explicado, sentido. O tempo não pode ser controlado ou mesmo medido, a despeito de tantos aparelhos de medição de tempo existentes, pois ele, o tempo, anda, corre, arrasta-se, diferentemente para cada um de nós, ainda que estejamos entrelaçados, na mesma fração temporal”.
- Acho que naquele dia, ele, como você hoje, expôs toda minha alma, que eu mesmo não conhecia, ou sei lá, abriu minha Caixa de Pandora, e eu tive muito medo que ele fosse mais forte que eu.
- E quando resolveu assumir seu nome, o que houve de verdade?
- Eu tive um amigo quando era criança que me defendia de todos meus medos. O mais importante é que ele nunca brigou nem assumiu nada por mim. O jeito que ele tinha de me proteger era me pegar pela mão, me levar até aquilo que me amedrontava e me obrigar, de uma maneira que não me dava opções, a enfrentá-lo. Isso me ensinou a enfrentar todos meus medos. Muitas coisas que fiz na vida foi apenas para enfrentá-los.
- Brilhante esse seu amigo. Quem era ele?
- Meu irmão mais velho. Um dia eu perguntei a ele por que ele não tinha medo de nada, e ele me respondeu: “Eu tinha muito medo de quase tudo, até o dia que enfrentei um cachorro que me fazia correr todo dia. Aí eu entendi que se a gente enfrenta o que nos apavora a gente se sente mais forte, então eu mudei de atitude. Mas o medo não some. A gente só o vence, ainda que seja por algum tempo”. E foi por isso que resolvi assumir o nome de Marc Gork. Era minha forma de enfrentar o medo que eu tinha dele.
- E funcionou?
- Como disse meu irmão, por algum tempo. Hoje eu pelo menos consigo enfrentá-lo todo dia. Quando ele começa a me amedrontar, eu escrevo sua história. Faço o que ele quer, eu sei disso. Mas ele nunca vai me vencer, e eu nunca vou publicar sua história.
- Será? Segundo você mesmo ele controla o tempo a seu favor. Quem pode dizer sobre o futuro senão Gork, o Senhor do Tempo?
- Pode ser. Mas como você me disse uma vez: “só o tempo sabe sobre nosso tempo”.
A tarde substitui a manhã, as sombras de nossas lembranças escorrem pelo ambiente, e se misturam às sombras que caem sobre a cidade. Continuamos a falar de nós, como se fôssemos donos de nosso tempo.


EPITÁFIO
sua herança
era apenas a lembrança de uma noite fria e chuvosa...”














- Escrever um conto falando sobre tempo?
- Não vô! Não é escrever sobre tempo. É escrever usando o tema TEMPO!
- Não se escreve um conto usando o tema TEMPO. Você pode escrever uma crônica, uma poesia, uma tese, uma dissertação, mas um conto! Não tem jeito.
- Pois esse é o meu problema, vô! Não consigo achar como escrever um conto com esse tema.
- Não consegue achar como, porque não há como! Isto é panaquice! Qualquer história que você tente escrever sobre esse tema vai acabar caindo no lugar comum de sempre.
- Qual lugar comum?
- Aquela música dos Titans, Epitáfio: “devia ter amado mais, ter me importado mais...” e coisas do tipo.
- Pó, vô! Aquela música é linda, é sensacional!
- Sensacional como música, sim, mas que é lugar comum é! E qualquer coisa que você tente escrever vai acabar caindo na mesma armadilha. Vai falar o quê? “Que o tempo leva todos nossos sonhos, que nos perdemos na caminhada tentando ser alguém, construir algo, alimentar nossos filhos, fazer fortuna, etc, etc, e nos esquecemos de construir nossa felicidade, plantar o amor, a compreensão”.
- Bom, eu estava me preparando para falar algo desse tipo. Não está bom?
- Bom? Isso qualquer babaca vai falar. É pura falta de criatividade!
- É por isso que estou aqui. Preciso urgentemente de ajuda, velhão!
- Velhão é a velha! Eu usaria outro ângulo. Não foge muito do lugar comum, mas pode agradar. Toma um licor? Jenipapo ou laranja? Este é lá de Diamantina. Sua tia Karina que trouxe, é uma delícia.
- Humm! Realmente delicioso. Que ângulo você usaria?
- A do “Tempo fora do Tempo”.
- Só você mesmo, vô! Que negócio é esse?
- Pois é o que te digo: O Tempo nunca está no Tempo que a Gente Quer. Pois então veja: a gente é criança, está doido para crescer para poder fazer coisas que o irmão mais velho faz e a gente não pode. Cresce um pouquinho, e fica doido para crescer ainda mais, para poder dar um beijo naquela professora que alimenta nossos sonhos. Aí a gente cresce, e continua louco de vontade de crescer um pouco mais, para conseguir seduzir a vizinha. Aí a gente consegue seduzi-la, e a coisa começa a ficar séria, e tudo que queríamos é não ser tão adulto, para não ter que assumir as conseqüências. Mas o tempo não se importa com nossos problemas, aí então você conhece alguém, se apaixona, e pela primeira vez, está exatamente no tempo que queria. Casa-se, inicia sua família, monta seu lar, seu cantinho. Parece que o mundo gira em torno de você. Você é o sol, o centro do universo. Então sua mulher engravida. Você vai ser pai. Curte cada momento, cada novidade. Sua filha nasce. Torna-se pai. E novamente o tempo sai do tempo.
- Sua filha nunca está no tempo que você gostaria. Te acorda a todo momento noite adentro. Você não agüenta a hora de vê-la crescer um pouco para poder dormir uma noite inteira. Ela começa a engatinhar, você fica louco que ela comece a andar. Andou. Deu o primeiro passinho. Cambaleante, mas definitivo. Áh, daqui a alguns dias estará correndo pela casa.
- Começou a andar. A todo momento você tem que acompanhá-la, de mãos dadas. Como seria bom que ela pudesse correr por si só. Começa a correr. Calma, menina. Você cai, vai se machucar. Não sobe aí, menina. Você quebra um braço, uma perna. Mas que menina mais cansativa. Como era bom quando ela andava de mãos dadas comigo, e eu não tinha que sair correndo atrás dela!
- E quando você parece estar sintonizando seu tempo com o tempo dela, vem outra, e começa tudo de novo, mas com a agravante que você agora terá que adequar seu tempo com o tempo de uma e de outra, que são bem diferentes.
- E chega o tempo de levá-las para a escola, e pela primeira vez você vai se separar, digo separar de verdade, fisicamente, de sua filha. Aí então você sabe o que é falta de sintonia entre o tempo dela e o seu. Pela primeira vez você se sente velho, o peso de ser pai, responsável pela vida de alguém. E sente a dor física da separação.
- Então ela, ou elas, começam a ter problemas na escola. Às vezes são só dificuldades de relacionamento, ou só um coleguinha que traz problemas, mas você novamente queria ser do tamanho dela, e poder ir lá e dar uns cascudos no garotinho, e resolver tudo.
- Vem a formatura do ensino básico, e você sente que está envelhecendo mais rapidamente que gostaria. E você percebe que sua filha, seu bebê, já não é tão bebê, porque ela começa a ficar triste, amuada, não quer mais conversar com você, e você percebe que ela está mais amiga da mãe que sua, que elas parecem ter segredos, e você a muito custo descobre que sua filha está “amando”.
- “Amando? Como ela pode estar amando? Ela só tem, tem, o que? Ela só tem 14 anos!! Meu Deus, minha filha já tem 14 anos!! Aí sua mulher te abraça com um sorriso maroto no rosto, como quem te diz: tá ficando velho, meu velho!
- E aí tudo que você queria é que ela fosse de novo aquele bebê cheinho que você podia pegar no colo, e você se dá conta de que já perdeu a conta de há quantos anos não pega sua filha no colo, nem lhe dá um abraço, um beijo, ou mesmo pergunta como foi o seu dia.
- Então, quando você pensa que conseguiu sintonizar seu tempo com o dela, que conseguiu assimilar sua meia idade com a juventude e as necessidades delas, você não sabe como, se vê entrando numa igreja de braços dados com sua filha e a entrega a um qualquer. Sua vontade é esmurrar o cara, mas tudo que consegue fazer é desejar-lhes felicidades e dizer ao pé do ouvido do sujeito que se ele fizer sua filha sofrer você acaba com ele.
- E é aí então que você se sente o mais velho dos caras. E dá vontade de sumir, partir para uma pescaria e nunca mais voltar. Mas você se dá conta que tem outra filha, e a única coisa que sabe é que tudo vai se repetir, mas mesmo assim tem que tentar sintonizar sua vida com a dela, e até mesmo com a da que se foi, porque daí a pouco ela vai te dar netos, e tudo vai começar de novo, numa eterna e interminável roda viva.
- Caracas, vô! Você faz a coisa parecer bem ruim!
- Eu não disse hora nenhuma que é ruim. Só é fato! O tempo da gente nunca está em sintonia com o tempo cronológico da vida da gente. E tem mais, quer ver? Aí a gente chega a uma idade que pode curtir a vida, já tem dinheiro, os filhos, ou no meu caso, as filhas já têm sua vida própria, você já adquiriu estabilidade financeira, mas aí, ou te falta companheira, como é o meu caso ou te falta saúde, como tanta gente que nós conhecemos.
- Não estou dizendo? Você faz tudo parecer muito ruim. Até onde eu sei, sua vida não foi assim ruim.
- Sente-se aqui mais perto. Dá cá um abraço no teu velho avô. Não se trata de ter sido boa ou ruim a vida, seja ela minha ou de qualquer um. O fato, o único fato inqüestionável da vida, é que nós nunca usamos nosso tempo com sabedoria. Aliás, nem com sabedoria nem com qualidade. Voltando lá àquele lugar comum que te falei: quando temos tempo, fazemos coisas que não devemos, ou usamos o tempo para adquirir coisas, títulos que de nada nos servirão num futuro mais longínquo. Nós nem sequer pensamos que teremos futuro longínquo. Aí, quando nos falta tempo, tudo que fazemos é lamuriar que usamos errado o tempo que tivemos.
- É o que você está fazendo?
- Como diria o Naldo: “ Sóóó!”
- E tem conserto?
- Pra usar o tempo certo? Não. O ser humano nunca vai saber fazer a coisa certa. O homem é o mais egoísta dos seres deste nosso planeta Terra. Você já leu aquele livro, O Homem não é uma Ilha? Não? Eu também não, não sei o conteúdo dele, mas vou te dizer, o homem é uma ilha! É uma ilha que interage com os outros homens-ilhas como ondas de um círculo de uma pedra lançada no lago. Elas vão se expandindo, caminhando e envolvendo todos que estão na sua área de contato. Os círculos internos são mais fortes, e vão se ampliando, se amainando e se enfraquecendo, como acontece conosco quando vamos envelhecendo, e dizem que a gente “está amolecendo”. É a vida, faz parte do “amadurecer” – só que o que amadurece tanto pode ficar mais doce quanto pode apodrecer e cair do pé.
- Estou te estranhando, velhão.
- Velhão é a velha! É. Você me pegou num dia ruim. Já estava nostálgico, aí você vem com esse papo de Tempo, a coisa desandou.
- São estas músicas do tempo do onça que você está ouvindo.
- Estas músicas não são do tempo do onça. São do meu tempo. Aí, você falou do “tempo do onça”. É outro assunto pro seu tema.
- Pode ser, mas acho que vou deixar este assunto para outro tempo. Dá aí outro cálice desse licor. Velhão, que trem gostoso!
- Velhão é a velha!


















O
TEMPO
QUE
O
TEMPO
TEM
e toda a eternidade
cabia dentro de um mísero segundo!”














O coelho entra pelo buraco carregando o enorme relógio, que tic-taqueia assustadoramente.
- Não tenho tempo! Não tenho tempo!
Alice corre e tenta segui-lo, mas o buraco se fecha e ela fica de fora, desesperada. Mas já não é Alice, sou eu!
Acordo de meu transe. Sinto dores por todo o corpo e totalmente perdida. Vou aos poucos me lembrando. A placa dizia para diminuir a velocidade, 40 km/h. A quanto estava? 60? 80? Não deu tempo para ver. A ultima lembrança é da derrapagem, o carro se lança no vazio, e a escuridão.
Tento me acalmar. Preciso descobrir onde e em que situação estou. Tento levantar-me, e percebo que estou presa ao carro. Metade do corpo dentro dele, meio tronco, os braços e cabeça para fora. Pareço estar presa pelo cinto de segurança. As luzes do carro se apagaram, a noite é escura, sem lua. A primeira coisa que me vem à cabeça é: se ninguém viu o acidente, ninguém vai descer para me socorrer, porque ninguém vai me ver aqui em baixo. Tenho que achar uma forma de sair daqui.
Percebo cheiro de gasolina. Não consigo ver nada. Tento me acalmar e aguçar os ouvidos. Consigo ouvir um pingar, que assimilado ao cheiro forte de combustível, me dá a certeza de que o carro pode pegar fogo ou até explodir. Só depende de uma faísca. Aí me lembro das aulas de direção defensiva: no caso de um acidente em que há risco de vazamento de combustível, a primeira coisa a fazer é desligar os polos da bateria, para evitar o risco de faísca.
Desespero-me. Tento angustiadamente me levantar, pois estou pendurada ao veículo. Não consigo. O desespero aumenta. Começo o gritar, a chorar convulsivamente. “Vou morrer. Não vai aparecer ninguém para me salvar”. Volto a gritar a plenos pulmões. Nada! Quando estou quase sendo vencida pelo pânico, lembro de meu pai me esbofetear quando tive uma crise de medo, com uns doze anos. Quase posso sentir a pancada. A lembrança me ajuda. “Preciso me acalmar” penso. Aos poucos vou controlando a respiração, que desacelera.
Tento raciocinar sobre minha situação. O que sei:

1 – caí numa ribanceira, numa noite sem lua, e aparentemente ninguém viu o acidente, porque ouço os carros passando na rodovia e ninguém vem me socorrer, o que significa que vou ter que me virar sozinha:
2 – estou presa ao carro, pendurada do lado de fora com sérias dificuldades para me levantar:
3 – não sei em que tipo de terreno estou, se o carro pode descer mais ou se ele está firme;
4 – há um vazamento de combustível, e conseqüentemente um alto risco de incêndio ou explosão.
Estes 4 itens são suficientes para uma conclusão lógica e trágica: como o coelho, NÃO TENHO TEMPO. TENHO QUE ACHAR UMA SAIDA RÁPIDA. MESMO QUE SEJA DESESPERADA.
Lentamente, vou me esforçando para levantar. Não posso fazer movimentos muito fortes nem rápidos, pois não sei se o carro está preso ou pode cair mais. Consigo alcançar a porta aberta do carro e tento içar meu corpo por ela. Minha mão se solta e caio. Novo desespero. Minha mão bate dentro d'água. “Estou ferrada” é tudo que consigo pensar. “Se estou dentro d”água, o carro pode afundar. Ou pior, se for um rio pode ser arrastado”.
De repente, me vem à memória um daqueles textos que a gente lê na internet, falando sobre o valor do tempo. “Se você quer saber quanto vale uma semana, pergunte a uma grávida. Se você quer saber quanto vale um milésimo de segundo, pergunte a um piloto de formula 1”, e por aí vai. Naquele instante eu entendi quanto vale um segundo, um instante, um piscar de olhos, porque foi menos de um piscar de olhos que me separou da estrada segura daquele buraco em que me encontrava.
“Estou literalmente ferrada” - penso novamente. Surpreendentemente, consigo me manter calma, concentrada. O raciocínio lógico, que eu sempre achei não possuir, funciona maravilhosamente. “Pelo menos isso” penso. “Vou sair dessa”. Vamos rever minha situação:
Aos itens já relacionados, acrescente-se a água. Tanto pode ser uma poça, uma lagoa, um riacho, ou um rio fundo que me arraste. Como saber? Pare, relaxe, espere alguns instantes e ouça. Se houver ruído de água corrente, é um rio. Se não, o risco deve ser menor. Se houver barulho de sapos, deve ser uma lagoa. De onde você tirou essa lógica, garota? Que coisa mais absurda!
O corpo dói em função da posição, mas eu tenho que esperar mais algum tempo, e me manter calma. O ruído de carros na pista parecia longe e era esporádico, portanto minhas chances de alguém me encontrar naquele buraco eram remotas. Eu teria que me virar sozinha. Fecho os olhos e tento ouvir a noite. Não consigo perceber som de água corrente por menor que seja. “Bom, não é rio nem mesmo riacho. Tanto melhor” penso. Também não ouço sapos, nem grilos ou pererecas (“como você pode distinguir sapo de perereca?”, penso), o que me dá novas esperanças. Deve ser só uma poça de chuva ou algo assim.
Reúno forças para tentar levantar meu corpo. Alcanço novamente a porta e seguro firme. Os dedos chegam a doer, pela força que faz e pelo frio que agora começo a sentir. O carro começa a balançar, e tenho que parar o movimento. O desespero começa a querer me abater. “Droga, droga, não dá para me dar uma chance”?, quase grito. Paro o movimento, o carro se estabiliza.
Recomeço o movimento. Vou puxando o corpo bem devagar. O carro balança, mas me parece que ele está firme no chão. Sinto minhas esperanças renovarem. Com muito esforço consigo içar meu corpo e me posicionar no banco do carro. Meu primeiro instinto é virar a chave, tentar ligar pelo menos os faróis, apertar desesperadamente a buzina para chamar a atenção de alguém, mas o cheiro de gasolina, felizmente, chega forte à minhas narinas e me lembra que se houver qualquer faísca tudo pode ir pelos ares. Num movimento rápido tiro as mãos da ignição e da buzina. Repenso meus movimentos. O carro parecia firme, o que já era uma grande ajuda.
- A lanterna! - lembro-me.
Meu pai me dera uma lanterna portátil e exigia que eu a mantivesse sempre no porta luvas, desde que eu começara a trabalhar longe de casa e passara a fazer o trajeto na estrada toda noite. Seria minha salvação. Inclino-me em direção ao porta luvas, mas o cinto de segurança me impede de alcançá-lo.  Solto o cinto e abro o porta luvas. O ato de procurar a lanterna no fundo, debaixo de um monte de coisas que eu ia jogando lá dentro, me obriga a fazer um movimento maior que planejara. O carro inclina-se para a direita, a porta do motorista bate e fecha, e o carro começa a se mover. A surpresa me congela. Devo ter demorado apenas uma fração de segundos para reagir, ainda assim parece ser uma eternidade. Volto à minha posição original, sentada no banco. Tento desesperadamente achar o trinco e abrir a porta, mas não consigo encontra-lo. Começo a gritar, gritar, com toda força que era capaz e a buzinar, me esquecendo do risco de incêndio. Nem me passa pela cabeça abrir o vidro.
Bato desesperadamente na buzina e grito como uma louca, pedindo por socorro. Meus movimentos fazem com que o carro se solte da posição em que se encontra e começa a descer, lentamente. Sinto que ele bate dentro d'água e começa a afundar. Então, como num flash de máquina fotográfica, me lembro da curva, que eu já conhecia bem, e de onde ela ficava. Lembro-me, com enorme desespero, que ali havia uma lagoa, e a única coisa que me vem à mente é: “Onde estão os sapos?”
O carro continua afundando, a água já entra dentro dele. Apesar do desespero, do medo de não conseguir sair dali, lembro-me da gasolina que vaza e penso que a água diminuiria o risco, mas tão rápido quando penso, vem a lembrança de que a gasolina queima mesmo na água, que já me cobre até a cintura. Até aquele momento não sentira frio, mas de repente me vem calafrios insuportáveis, que me fazem desesperar ainda mais. Todo o corpo dói. Os dedos parecem congelar, mas ainda assim, instintivamente retorno à tentativa de abrir a porta.
Então percebo luzes ao longe. Não consigo distinguir de onde vêm, mas elas me dão novas energias. Recomeço a gritar e a me esforçar para abrir a porta. Alguém bate no vidro e grita, mas eu não consigo entender o que ele diz. Aí ele encosta o rosto no vidro, e grita, silábica e pausadamente: “DESTRANQUE A PORTA!”
Ao entender o que ele diz, a primeira descarga de adrenalina é de desespero. Como? O que? Destrancar que porta? Do quê ele está falando?
Não consigo ver nada. Quase sem pensar, sem saber o que estou fazendo, meus dedos localizam o trinco e consigo destrancar a porta. Ele a abre violentamente. O carro agora afunda mais rapidamente, e eu já estou de água quase até o pescoço. Ele me pega pelo braço e puxa de um só golpe. Caímos os dois dentro da água gelada. O carro continua a afundar, até parar, ficando somente com o capô acima da água.
Ele me arrasta para fora da água. Não sei de onde nem como, aparece alguém com um cobertor e me enrola nele.
- Onde estão os sapos? Porque não tem sapo? - eu pergunto alucinadamente.
- Sapos? De que você está falando?
- Sapos! Não tem sapos.
Ouvi alguém dizer: “Ela parece estar em choque. Vamos aquecê-la”.
Arrastam-me até um micro-ônibus e me instalam lá. Alguém coloca em minhas mãos uma bebida quente, que bebo mecanicamente. Alguém me abraça forte, e pela voz reconheço uma aluna da faculdade. A van onde haviam me instalado era a que transportava alguns de meus alunos. Sinto-me um pouco mais segura. O calor da bebida em minhas mãos me dá novo ânimo.
Alguém chega perto de mim, portando uma pequena lanterna. Abre meus olhos e confere. Vira-se em direção a alguém que o acompanha.
- Ela está bem, não se preocupe - bate carinhosamente no meu braço. Você vai ficar bem. Foi só um susto, e que susto!
Eu pergunto: “Por que não tem sapos?
- Sapos? De que você está falando?
- Ela pergunta o tempo todo sobre sapo, doutor. Parece que está meio pirada.
- Se é uma lagoa, deveria ter sapos cantando - eu digo.
- Sei lá. Vai ver não é época de sapos. Ou quem sabe eles estão mais assustados que você e se esconderam, não estão cantando.
Ele se levanta e vai embora. A garota que me abraçara esfrega meus braços para me esquentar, mas não sinto mais frio. Sem pensar, abro a jaqueta que estivera fechada durante todo o tempo e retiro do bolso interno o celular. Disco para minha mãe. Inexplicavelmente, apesar de molhado, o aparelho funciona. Toca uma vez, duas. Penso em desligar, mas me vem a lembrança de que minha mãe irá acordar, e como seu telefone tem identificador de chamadas, vai ficar ainda mais preocupada. Resolvo falar com ela, mesmo achando que foi uma má idéia ligar.
- Alô?
- Mãe? É a Cássia. Mãe, eu vou demorar. Houve um acidente. Uma moça saiu da estrada e está tudo parado. Mas não se preocupe que estou bem.
- E como ela está, minha filha?
- Quem, mãe?
- A moça do acidente.
- Ah, mãe. Está tudo bem com ela. Eles já a tiraram de lá, e ela não se machucou. Ficou só no prejuízo. Pode dormir. Eu liguei só para vocês não ficarem preocupados com minha demora.
- Ok minha filha. Se precisar ligue de volta. Fique com Deus.
- Boa noite mamãe.
Meu corpo parece relaxar e um cansaço imenso se apodera de mim.
A atenção agora se volta para a necessidade de resgate do meu carro, que se inicia com a chegada do guincho. Aí me lembro que no carro estão as provas finais de mais de 100 alunos. “O que vou fazer?” me pergunto.
Lembro-me que apenas alguns minutos antes do acidente fizera uma ligação para minha mãe, para dizer-lhe que estava saindo da Faculdade. Instintivamente olho no celular. A eternidade entre uma ligação e outra durara exatos 32 minutos.
Então, a lua aparece no horizonte, num crescente enigmático, como a me dizer que eu renascera naquela noite.
E ao longe um sapo coaxa à minha direita. Outro responde à minha esquerda, depois outro, e outro, e outro...