segunda-feira, 20 de junho de 2011

Um dia para esquecer

 

A lembrança é como uma imagem no fundo de um poço, que o movimento da água não deixa visualizar. Com o mesmo desespero que tenta buscar a imagem, alguma coisa parece dizer a Márcia que é melhor não recupera-la. Então, como num clarão de um raio, a lembrança se forma no seu cérebro.
Márcia acorda, o suor lhe escorrendo pela pele, a tempo de parar o grito de pavor que lhe sobe pela garganta. Com a mão sobre a boca, abre os olhos e se dá conta de onde está. Deitada sobre um sofá nem confortável nem desconfortável, sente o corpo todo dolorido. A penumbra cobre todo o ambiente. Não pode distinguir com exatidão, mas sabe que há três homens, todos armados, na casa. Uma luz difusa vem de um cômodo que lhe parece ser um banheiro. Sabe que está na sala. Num quarto em frente a ela estão sua filha de quinze anos e o filho de oito. A respiração lentamente volta ao normal, e ela consegue ir formando os pensamentos. Os filhos foram separados dela, e ela se lembra de uma frase, ouvida em um filme não sabe onde nem quando: “dividir para conquistar!” “Se eu tentar qualquer coisa, com meus filhos longe de mim tudo vai ser mais difícil”, pensa.
Lentamente move a cabeça sem se levantar e tenta descobrir os vigias. Um está de frente à porta de entrada, os outros ela não consegue localizar. O silencio é ao mesmo tempo um alívio e um peso angustiante. Dirige sua atenção na direção dos filhos, na tentativa de identificar se eles estão bem. Parece ouvir o suave ronco do filho mais novo, mas não consegue distinguir se a garota dorme ou está acordada. “Ela deve estar desesperada!” pensa Márcia.
Ela sabe que só há uma coisa a fazer: esperar. Tentar dormir, se acalmar e esperar. Mas como esperar, ter calma, com seus filhos indefesos nas mãos de três homens desconhecidos, armados, dispostos a não se sabe o quê? Márcia não sabe se torce para que o seqüestro dê certo ou para que a polícia o descubra e pegue todos os assaltantes. Se der certo, e o marido, gerente de banco, der aos seus raptores o dinheiro pedido, serão soltos como prometido? Já vira muitos filmes e ouvira suficientes casos de seqüestros, para saber que corriam risco de vida ainda assim. Se não desse certo, e os assaltantes fossem presos, ou se o assalto fosse frustrado, seus seqüestradores simplesmente os deixariam livres, sem nenhum lucro, ou os matariam em represália?
O desespero de Márcia aumenta, e para tentar se acalmar, ela tenta entender como tudo acontecera.

- Mamãe, o gás acabou!
- Aline, pegue na porta da geladeira o imã do motoqueiro e peça que eles trazem rapidinho. Pergunte quanto é pra eu fazer o cheque.
- Mãe, qual? Aqui tem dois imãs.
- Peça pro de vermelho, que ele é melhor e atende mais rápido.
- Tá.

- Mãe, o gás chegou. Você já fez o cheque?
- Peça a ele pra trocar enquanto eu faço!

A casa é de dois pavimentos. No superior, os dormitórios e banho social. No térreo, a sala de visitas, copa, biblioteca, cozinha, dependência de empregados e área de serviço. Márcia desce com o cheque preenchido nas mãos. Ao chegar à cozinha, depara-se com os filhos assentados, enquanto um homem lhes aponta uma arma. Assustadíssimos, as crianças tentam correr em direção à mãe, que fica paralisada vendo a cena. O homem interrompe o movimento das crianças, obrigando-as a se manterem onde estão. Com um movimento da arma ele manda que Márcia se assente no banquinho que se encontra vazio.
- Eu já troquei o gás. Você pode continuar a fazer o lanche da tarde. Logo seu marido vai chegar, e nós vamos ter uma pequena reunião.
- Isto é uma brincadeira? O que está acontecendo?
Márcia tenta chamar os filhos para si, mas o homem não deixa.
- Preste atenção. Eu vou explicar uma única vez, por isso ouçam bem.
Regras:
1ª - continuem a fazer o que estavam fazendo e como fazem todo dia.
2ª - não tentem correr, fugir, comunicar-se com ninguém.
3ª - quando seu marido chegar, não faça nenhum movimento diferente, nem tente alerta-lo da minha presença.
4ª - façam tudo como eu lhes ordenar, e ninguém vai se machucar, nem agora nem depois.
5ª - quinta, quinta. Bom, acho que não precisa de quinta regra, estas já dizem tudo.
- O que vocês querem com a gente? Nós não temos dinheiro que justifique um seqüestro?
- Vocês não, mas o banco em que seu marido trabalha tem!
- O banco? Não entendi?
- Não tente. Continue a fazer o que sempre faz a esta hora que quando seu marido chegar a gente se entende. Façam de conta que não estou aqui, mas ao mesmo tempo não se esqueçam que tenho uma arma, e não tenho medo de usa-la, por isso não me dêem motivo, entenderam?
Márcia faz que sim com a cabeça. O homem posiciona-se num canto da cozinha de onde pode vigiar todos os movimentos dos três. Márcia abraça os filhos.
- Vamos! Vamos continuar preparando nosso lanche. Cada um sabe o que tem que fazer.
Apreensivamente, as duas crianças voltam às suas tarefas. Arrumação da mesa, talheres, leite, café, biscoitos, pão, queijo, frutas. Enquanto trabalham, dirigem olhares furtivos para o homem e uns para os outros. Márcia faz gestos recomendando calma. Quando a mesa está quase posta, se ouve uma buzina e o ruído do portão eletrônico se abrindo. Márcia e os filhos se entreolham, e só então se dão conta que o homem não está no campo de visão de quem chega. Com um movimento da arma, indica aos três que se dirijam à cozinha. O marido de Márcia passa pela garagem, contorna a casa e entra pela porta da cozinha. Ao entrar, se depara com sua família abraçada e cara de assustados.
- O que ouve? Que cara é essa?
- Sente-se ali. Devagar e com calma.
A voz que vem de traz surpreende Renildo, que sente nas costas um objeto frio. Ele tenta se voltar e é impedido pelo assaltante.
- Não precisa se virar. Apenas sente-se ali. E vocês também.
Cada um se senta em um banquinho da cozinha. A campainha toca. O homem dirige-se ao menino.
- Abra o portão.
O menino olha assustado para os pais. Seu pai manda que ele obedeça. Em alguns instantes, mais dois homens estão dentro da casa, todos armados.
- É simples. Vocês já devem ter entendido. Isto é um seqüestro com finalidade de assalto a banco. Vocês estão sendo monitorados a tempo suficiente para termos conhecimento de todos seus hábitos, movimentos, relacionamentos, preferências, horários, itinerários, etc.
- Sabemos onde cada um de seus filhos estuda, das aulas particulares de inglês, judô e academia de sua esposa. Sabemos o nome, endereço, hábitos, e etc do namorado de sua filha. Monitoramos os amigos e familiares dos coleguinhas de seu filho. Sabemos quais filmes vocês gostam e quais detestam, vasculhamos e-mails de todos da casa, monitoramos telefones, recados. Sabemos a que hora vocês dormem, quem se levanta cedo e quem fica até mais tarde na cama. Estão entendendo?
O menino se agarra forte ao pai, que o abraça de volta, dando palmadinhas nas costas na tentativa de acalmá-lo.
- Sim. Estamos entendendo.
- Ótimo! Entendam o seguinte: não queremos nada com vocês, seu carro, seus bens, nada! Muito menos queremos fazer qualquer mal ou machucar qualquer de vocês, é só vocês fazerem o que mandarmos, e do jeito que mandarmos. Não pensem que somos bonzinhos, que não machucaremos vocês se tentarem algo. Se for preciso, todos nós sabemos usar estas armas, e sabemos lutar bem, até mesmo judô – olha para o menino. Por isso, tudo que têm que fazer é continuar suas vidas como todo dia, como se nada tivesse acontecido. Façam suas refeições, assistam suas novelas, seus jornais, durmam à hora normal, mas não se esqueçam: estamos aqui, cada instante até que tudo se resolva. Há mais alguns homens vigiando a casa, monitorando cada movimento, por isso não tentem nada, apenas façam o que mandamos que tudo sairá bem. Agora vamos para a mesa, que o lanche está preparado.
Todos se levantam e se dirigem à mesa, mas ninguém consegue comer nada. Os três homens se servem em silêncio e tranqüilamente do alimento que está à mesa, o que deixa os donos da casa ainda mais intranqüilos. Tentam seguir a rotina diária o mais normal possível, mas não é fácil. A sensação de opressão e medo não os abandona em nenhum instante. Às vezes o celular de um dos homens dá um leve toque, ele o lê e faz sinal para o homem que comanda a ação. Até aquele momento, apenas se ouvira sua voz, os outros nada haviam falado, apenas vigiavam os habitantes da casa, alertas a qualquer movimento diferente. A noite segue tranqüila dentro do possível e sem nenhum incidente.
Quando Márcia vai colocar os filhos para dormir, o homem determina que se traga os colchões para a biblioteca e que todos durmam juntos no chão. O casal tenta argumentar, mas o homem apenas olha com um olhar duro, que é entendido por Renildo. Ele então se dirige ao quarto dos filhos, acompanhado da vigilância severa de um dos seqüestradores. Todos se acomodam como é possível no chão e logo as crianças estão dormindo. Márcia finge dormir, abraçada ao marido.

A madrugada vai alta, quando são acordados pelo seqüestrador. Todos acordam entre assustados e apreensivos.
- O que foi agora? Quê que está acontecendo?
- Levantem-se. Nós vamos dar um passeio.
- Espere aí. A gente fez tudo que vocês mandaram até agora, que novidade é essa? Tenta argumentar Renildo.
Márcia assustada se abraça aos filhos. Os outros dois seqüestradores chegam perto deles e os agarram.
- Vocês vão com eles, diz, indicando Márcia e os filhos aos dois homens.
- Você, senhor Renildo, vai ficar aqui comigo até que a gente possa ir ao banco amanhã de manhã e resolver tudo. Se der tudo certo, se você não estragar a coisa toda, a gente libera sua família e nunca mais vocês ouvem falar de nós, mas se você aprontar com a gente... bom você não é bobo, é?
Renildo tenta argumentar com o homem, enquanto sua família se agarra desesperadamente a ele.
- Não é preciso nada disso. Eu vou fazer o que vocês querem. Não vou estragar nada. Vou obedecer vocês direitinho. Não façam isso, por favor!
- É melhor se soltarem dele. Façam como estou dizendo que vai dar tudo bem. Apenas isso.
- Não! Eles não vão a lugar algum. Eu já disse que vou fazer como vocês querem!
Enquanto fala, Renildo abraça-se a sua família. O seqüestrador, num movimento rápido e firme, engatilha a arma e coloca-a no pescoço de Renildo, apertando-a fortemente contra seu queixo. Fala baixo, mansamente, com o rosto quase colado ao dele.
- Eles irão com meus homens, e você vai ficar aqui comigo. Deu pra entender?
Renildo se solta lentamente de sua família. Dá um beijo e um abraço em cada um deles.
- Façam o que eles mandarem. Vai dar tudo certo, eu prometo. Vão. Eu amo vocês!
Márcia e os filhos são levados pelos dois homens que nada dizem e colocados dentro do carro da família. Grande, um station wagon, tem os vidros escurecidos por película plástica, o que dificulta a visão de quem está de fora, facilitando assim a ação dos seqüestradores. Um dos homens se posiciona ao volante, com Márcia e os filhos no banco de trás, vigiados pelo outro seqüestrador que viaja no banco da frente. O motorista abre o portão eletrônico de dentro do veículo, manobra, aciona o controle e aguarda que o portão se feche totalmente, como sempre fazem os moradores da casa. O homem ao seu lado não perde um só movimento das suas vítimas. Quando o veículo se distancia um pouco da casa e não mais se vê ninguém nas ruas, dá a eles três capuzes, e manda que os coloquem. A partir daí, Márcia só consegue sentir os movimentos do veiculo: paradas, arrancadas, manobras de conversão, às vezes para a direita, à vezes para a esquerda, às vezes dando a impressão de retorno, sempre calmas, sem excesso para não chamar a atenção.
Quando o veiculo pára, eles são retirados lá de dentro ainda com os capuzes na cabeça, o que leva Márcia a deduzir que estão em uma casa onde nada se pode ver de fora, ou eles os tirariam do carro descobertos. Outro seqüestrador já os esperava, e novamente eles têm três homens armados a vigiá-los, só que agora não têm a presença do marido, o que enfraquece sua moral, e ainda é uma preocupação a mais: seu marido só, sob o controle de homens armados.

Daquele momento até agora, poucas horas se passaram, mas para Márcia parece uma eternidade. Sem conseguir dormir, nos instantes em que o cansaço a vence e ela cochila, acorda sobressaltada como se uma tragédia houvesse acontecido.

O sol ilumina o ambiente. As janelas estão todas fechadas. Do sofá Márcia vislumbra os filhos que do quarto tentam um contato visual. Ela acena para que eles se acalmem, procura pelos seqüestradores que sumiram de seu campo visual. Acena para os filhos, perguntando por eles. A filha acena de volta, dizendo que um está no quarto com eles. O homem aparece no seu campo visual, olha para Márcia, que interrompe os gestos, olha para as crianças, que se encolhem de medo, e volta para o lugar onde estava.
O homem que estivera à janela quase toda a noite aparece na sala. Olha para Márcia, mas nada diz. Márcia se dirige a ele.
- A gente ta com fome. Não tem nada pra gente comer aí não?
O homem olha para ela e nada diz. Balança a arma na ponta dos dedos e senta-se no outro sofá, em frente à Márcia. Ela insiste.
- Eu e as crianças queremos comer alguma coisa.
O terceiro homem chega, vindo de um cômodo que parecia ser a cozinha, trazendo numa bandeja pão com margarina e café em copos de vidro. Serve-a primeiro. Márcia pede para levar o lanche para os filhos, mas ele manda que ela continue onde está. Leva o restante ao quarto onde estão as crianças. Elas se recusam a comer, mas Márcia de onde está pede a elas que se alimentem. Mesmo receosos, eles comem o pão com café.
Márcia volta-se para o homem, que parecia comandar o cativeiro.
- Não dá pra gente ficar todo mundo junto, não? Deixa meus filhos ficarem comigo. Fica mais fácil eu acalmá-los e esperar.
- Dona, fica quieta aí do jeito que a gente mandou que logo a gente se manda. E não procure conversa que aqui ninguém é de papo não.
Márcia decide que é melhor ficar onde está. Olha para os filhos e vê neles um pânico quase incontrolável. O medo de que eles não consigam suportar a pressão aumenta, mas ela só pode mesmo rezar e esperar. Acena mais uma vez para eles, pedindo calma e que esperem. A manhã se arrasta a passo de tartaruga.

“Agora eu sei o que é eternidade”, pensa Márcia. A manhã parece não passar. Márcia tem no pulso um pequeno relógio, que ela olhara milhares de vezes desde que acordara. Sente que seus seqüestradores não apresentam mais a tranqüilidade e confiança que aparentavam anteriormente. Teme que alguma coisa não tenha saído como planejado e que ela e seus filhos não estejam mais em segurança.
A imaginação de Márcia não tem limites. Seus pensamentos vão desde a perigosa situação em que se encontra, a preocupação com sua filha adolescente no quarto com um bandido armado, até a situação de seu marido, seu sofrimento em não saber deles, a maneira como ele fará para retirar o dinheiro do banco, os seqüestradores a vigia-los.
Quando se lembra da declaração do seqüestrador de que “conhecia todos seus hábitos, gostos, que vasculhara e-mails, correspondência, e etc”, Márcia se sente aviltada, agredida. Um ódio insuportável e sufocante nasce e cresce subitamente dentro dela, e sente ímpetos de agredir seus opressores.

Um celular toca em algum lugar. Há um sobressalto geral, seqüestradores e vítimas. Márcia não sabe o que esperar, se uma noticia boa ou uma violência contra ela e seus filhos. O desespero aumenta, proporcionalmente à esperança. O homem que falara com ela atende ao telefone e apenas ouve. Desliga o aparelho. Olha para seus comparsas e para suas vitimas.
- Vamos!
Márcia se levanta e vai em direção aos filhos. Os homens que os vigiavam apenas os acompanham e indicam a direção que devem tomar. Antes de sair da casa, mandam que recoloquem os capuzes. A escuridão do pano, em contrate com a luz existente a angustia e desespera ainda mais. Ela pede para que os deixem descobertos.
- Dona, a senhora ta me irritando, diz nervosamente o homem.
Empurra-a em direção ao carro, força-os a entrar. Todos se posicionam da mesma forma que antes. Novamente Márcia sente os movimentos do carro, agora um pouco mais veloz que na noite anterior. Pelo ruído do trânsito ela sente que eles tomam uma avenida, ou uma estrada movimentada. Rodam por poucos minutos. Enquanto estão em movimento, o homem que os vigia dá novas instruções.
- Quando a gente sair, vocês vão esperar cinco minutos antes de sair do carro. Não liguem para ninguém antes desse tempo. Seu marido já foi avisado que vocês estão bem. Vai ter alguém vigiando vocês. Se não obedecerem, alguém pode se machucar. Há gente vigiando vocês e seu marido. Façam do jeito que mandamos e ninguém se machuca e nunca mais vão ouvir falar na gente.
Quase ao mesmo tempo em que ele termina as instruções, o veículo freia e pára. O homem puxa num movimento os capuzes das suas cabeças – “mantenham os olhos fechados, não abram até a gente sair” - enfia-os dentro de uma sacola e saem rapidamente dali.
Márcia diz mais tarde ao marido que foram os cinco minutos mais longos e mais angustiantes de sua vida. “Eu podia ouvir gente passando por nós, pessoas olhando dentro do carro, ouvi alguém que até bateu no vidro, mas eu não tinha coragem de sair. Parece que minhas pernas e braços não atendiam meu comando. Congelei totalmente”.
Depois de algum tempo, Márcia e as crianças saem do carro. Estão numa rua que dá para uma avenida movimentada, mas ela não consegue identificar o local. Pensa em perguntar a algum transeunte onde estão, mas tem medo de todos que passam, teme que a pessoa a quem se dirigir seja alguém que os vigia, que ela e seus filhos sejam feridos. Perde alguns minutos até ter qualquer iniciativa. Olha em volta e descobre um telefone público. Manda que os filhos fiquem no carro, eles em desespero falam que não, que ficarão juntos com ela. Márcia então os leva consigo até o telefone. Liga a cobrar para o celular do marido, informa-o que estão bem, pergunta como ele está.
Renildo atende ao telefone com a voz calma, mas quando a esposa lhe avisa que estão bem, não consegue se conter e solta as lágrimas. Toda a pressão que sentira durante à tarde e a noite anterior o fazem desabar. Ele desliga o telefone, deixa o corpo cair no sofá de casa, onde esperava notícias de sua família, e chora convulsivamente.
Depois de falar com o marido e explicar que não sabia onde estava, Márcia desliga o telefone e cria coragem para procurar alguém que identifique o lugar em que se encontram. Não fala a ninguém de sua tragédia, apenas diz que se perdera e pede informações para voltar para casa. Liga de volta para o marido, informa onde se encontra e pede que ele venha buscá-los, pois não quer dirigir o carro deixado pelos seqüestradores. Renildo ainda demora uns trinta minutos a chegar. No caminho de volta Márcia vai relaxando o corpo. Enquanto sente a tensão diminuir ela quebra o silêncio que impera dentro do carro.
- Aí gente, tudo bem aí? Vocês se saíram muito bem. Estou orgulhosa!
As duas crianças tentam esboçar um sorriso para a mãe.
Quando chegam em casa, Renildo abraça e beija várias vezes sua esposa e filhos. Entram rapidamente dentro da casa, enquanto perguntas se entrecruzam, todos querendo falar e saber ao mesmo tempo pelo que passou o outro.
Márcia pensa que o caos tivera fim, mas se enganara. Em casa esperam seus parentes e amigos para animá-los, mas também esperam a polícia e a Segurança do banco. Seguem-se depoimentos, ora ela, ora o marido, ora os filhos, por um tempo que lhe parece interminável. Às vezes se sente reconfortada pelos entrevistadores, às vezes se sente constrangida, pressionada. Quando eles se vão, e a família pode finalmente descansar, ela pede aos amigos que os deixem sós. Márcia então abraça novamente seu marido e filhos e juntos oram agradecendo suas vidas.

Um ano se passara desde o seqüestro. No início, cada ruído, cada som ou presença era um sobressalto. Lenta e gradualmente, a vida de todos voltara ao normal, dentro do possível. Novas rotinas de segurança foram adotadas, e a confiança aos poucos voltava ao dia a dia de toda a família. Agora, quando aquela lembrança tentava se formar na lâmina de água no fundo do poço, Márcia fechava os olhos e prendia a respiração, até que ela se fosse.

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